França: a tática, a moral e a história

À esquerda nunca pode ser indiferente de que lado da história se está.

Aqui há mês e pouco, a propósito das eleições presidenciais francesas, ferveu a controvérsia de saber como se deveria comportar a esquerda em face da dupla ameaça da extrema-direita e da deriva do projeto europeu. Essa questão pode ter sido cristalizada em torno de momentos e personagens concretos — saber se Jean-Luc Mélenchon deveria ter apoiado Macron contra Le Pen, por exemplo — mas a verdade é que ela assenta em velhos dilemas de fundo: quem é o inimigo e quem é o adversário? quem devemos combater e com quem devemos competir? devemos querer salvar o projeto europeu ou antecipar o seu colapso?

Para alguns, o projeto europeu está destinado ao colapso e a esquerda deve antecipá-lo, combatendo o centro para competir com a extrema-direita no campo do euroceticismo. Nessa visão, o centro aproxima-se da figura do inimigo e a extrema-direita acaba por se tornar num mero adversário. Para outros, vale a pena salvar o projeto europeu: nesse caso, o centro pode ser o adversário mas a extrema-direita é o inimigo. A diferença é subtil mas é crucial e por isso a polémica era intensa.

Uma das características comuns em quem escolhe a primeira opção (estar por fora do projeto europeu para competir com a extrema-direita e combater o centro) é ter interpretado os últimos anos, e especialmente 2016, como um sinal de que a vaga nacional-populista era imparável e de que o Brexit e Trump tinham provado que a vontade geral popular era a de desmantelar o projeto europeu e meter a marcha-atrás na globalização. Nesse caso, para quê deixar a extrema-direita ficar com os despojos do centro? Mais valia pescar nas mesmas águas nacionalistas para beneficiar da suposta tendência geral. Essa foi uma das razões que levou Mélenchon a não apoiar Macron contra Le Pen. Como escreveu um dos seus principais apoiantes, François Ruffin, Macron era já “detestado pelo povo” antes de chegar a presidente: em consequência, uma associação a Macron era mais tóxica e indesejável do que um silêncio ambíguo em relação a Le Pen.

O problema é que esta posição pretende resumir a uma questão de tática aquilo que na verdade é muito mais uma questão de moral, e uma questão de história.

Aquilo que escolhemos combater e aquilo com que escolhemos competir também nos define. Combater a Europa para competir com a extrema-direita forçar-nos-á a usar os mesmos argumentos da última contra a primeira, mesmo que acreditemos que é por razões diferentes. Mas as ideias têm a sua própria força e isto não é meramente teórico: em França, há intelectuais de esquerda (um exemplo é o economista Jacques Sapir) que começaram a defender os “nossos trabalhadores” contra os dos outros ou a necessidade de ter uma população fixa para “possibilitar o estado social” e acabaram a defender uma aliança tática com a Frente Nacional contra a UE. A deriva moral é, para mim pelo menos, evidente.

E, para concluir, estas escolhas não são só táticas nem mesmo sequer só morais. São históricas. À esquerda nunca pode ser indiferente de que lado da história se está. Estar contra a Europa para competir com a extrema-direita ou estar do lado da Europa para combater a extrema-direita não é a mesma coisa. No primeiro caso, opta-se por desistir do projeto europeu em nome de uma leitura do regresso da história à chave “nacional”. No segundo caso, faz-se o esforço de apresentar uma versão de esquerda daquilo que poderia ser um projeto europeu social e democrático e uma visão justa da globalização, se quisermos que a Europa e a globalização não sejam monopolizadas só pelo centro. As eleições francesas de ontem, dominadas por um Macron que afinal não é tão detestado como isso, e onde os socialistas foram arrasados e a dinâmica de Mélenchon se esvaziou, sugerem que em França estamos mesmo numa situação de monopólio do centro. Se a esquerda francesa quiser reconstruir-se para disputar a sério esse monopólio, uma boa ideia seria apresentar uma visão alternativa do que deseja para o projeto europeu, em vez de apostar só no suposto colapso da UE.

Infelizmente, certas escolhas podem ser morais e históricas, mas há quem só aprenda quando elas se revelam erros táticos.

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