No adeus do Primavera, a altiva Elza Soares e os tumultuosos Death Grips e Aphex Twin

O NOS Primavera Sound, que este ano registou assistência recorde, terminou este sábado. Na memória fica mais um concerto magnífico de Elza Soares e o concertos tumulto dos Death Grips. Aphex Twin encerrou a noite e não esteve ali para nos confortar.

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Lasers sobre o público e atravessando a noite. Aphex Twin: electrónica dilacerada, música reduzida a partículas de ritmo e átomos de melodias, tudo retalhado e construído pelo inglês nascido Richard D. James. Não é música de festa, é música para confusão sensorial e desvario dos sentidos, que são estimulados, provocados, atormentados pelo homem que descobrimos na penumbra do palco, figura escondida entre todos os ecrãs.

Que este concerto de Aphex Twin tenha protagonizado a despedida (no palco principal) deste ano do NOS Primavera Sound, é sintomático do que foi esta edição do festival e, particularmente, do dia que o encerrou. Porque houve Elza Soares a denunciar bem alto, bem altiva no seu trono, racismos, homofobias, transfobias. Porque houve uns Death Grips a estrearem-se em Portugal com um concerto histórico, violentíssima descarga de raiva e frustracções - misto de hip hop, punk, metal e sabemos lá que mais (sabemos, por exemplo, que o mundo não vai bem, obrigado, e que os Death Grips são a sua voz zangada, desesperada, a larvar no subconsciente).

Dos malianos Songhoi Blues, devotos de James Brown e, de forma ainda mais generosa, de Jimi Hendrix, à hibridez de Sampha, autor de música com apreço pela rarefeição electrónica de James Blake ou pela entrega emocional de Benjamin Clementine (e até havia um (No one knows me) like the piano para aplaudir), mostrou-se mundo e diversidade no NOS Primavera Sound.

O festival teve este ano, como já escrevemos, uma edição sem nomes que se elevassem naturalmente sobre os demais (Bon Iver terá sido o que mais se aproximou desse estatuto), espelhou em si o cenário musical contemporâneo, onde aclamações gerais são raras, substituídas por diversos e distintos núcleos de afectos comunicando entre si. Nesse sentido, talvez não surpreenda que tenha batido os seus recordes de assistência, com um dia esgotado (o de sexta-feira, com Bon Iver como cabeça de cartaz) e outros dois próximos próximos disso. Para que tal acontecesse, concorreram o prestígio e a popularidade, dentro e fora de portas, que o festival foi construindo, e uma programação que foi progressivamente alargando o seu raio de acção para além do universo rock independente que foi e que continua a ser a sua matriz.

Na edição 2018, que se realizará a 7, 8 e 9 de Junho, como foi noticiado na tarde de sábado, a lotação máxima manter-se-á nos 30 mil espectadores, com a indispensável adequação da logística do recinto, de forma a minorar os efeitos do aumento de público nas filas para casas de banho e nas zonas de bebida e restauração.

Festa popular com os Metronomy

Depois do primeiro dia de festival em que deixou marcas o hip hop dos Run The Jewels e a electrónica feita concerto rock dos Justice, depois de um segundo em que Bon Iver concentrou atenções, mas em que também se destacaram Swans, Nicolas Jaar, Skepta, Angel Olsen e Sleaford Mods, a despedida proporciou festa popular através da saltitante pop de arestas digitais dos Metronomy (que se corra para as primeiras filas do palco principal, o NOS, que estava a chegar o grande êxito, The look, e Reservoir, a da despedida do concerto). Neste dia, no mesmo palco, os Growlers, o combo californiano, mostrou todo o seu charme, algures entre o carisma de um protagonista de Boogie Nights e do de Dude, de The Big Lebowski, e fez a festa como banda de baile de uma realidade alternativa, psicadélica mas fã do bom groove 70s – “shake me down”, como cantam em I’ll be around, do mais recente City club, é o mote.

Ao longo do dia, o público foi-se dividindo pelos palcos, procurando as suas preferências, indo em busca  de surpresas ou seguindo recomendações de amigos. Para alguns era obrigatório não perder os totalistas Shellac, a banda de Steve Albini que marcou presença em todas as edições do festival. Outros puseram Sampha de lado para verem Mitski trocar o tom cantautoral e a qualidadade evanescente da sua música por descarga rock de power-trio com PJ Harvey no horizonte. Juntaram-se muitos no Palco Super Bock, um dos principais, para o tumulto rock sónico dos Japandroids, enquanto no palco Pitchfork Weyes Blood, uma das autoras pop mais interessantes do cenário actual, surpreendia ao oferecer-nos uma versão de Vitamin C, clássico dos alemães Can.

Como sempre, muito foi acontecendo nos quatro palcos, muito foi acontecendo fora deles –  quantas novas amizades, quantas discussões sobre música e sobre quaisquer outros temas terão sido feitas na fila montada, toda a tarde, para recolher as coroas de flores que decoravam tantas cabeças? Quanto bom descanso foi ganho com os corpos deitados sobre os panos oferecidos pelos patrocinadores e estendidos sobre a relva? Quando terminou o dia, porém, havia algo que levávamos de forma mais marcante.

Do último dia da edição 2017 do NOS Primavera Sound levaremos a voz da magnífica Elza Soares a da espantosa banda que a acompanha, liderada pelo baterista Guilherme Kastrup. A Mulher do Fim do Mundo surgiu na tarde iluminada de sol e céu azul e sambou, sentada no seu trono, aquela música onde a sabedoria do tempo e a vontade do presente, manifestada nas formas eléctricas e electrónicas, tensas num momento para se libertarem depois no balanço dolente de um chorinho movido a cavaquinho, são o chão construído para que a voz se liberte. E tanto disse ela, a octagenária Elza Soares.

A denúncia da violência doméstica em Vila Matilde e uma multidão a entoar com ela “você se vai arrepender de levantar a mão p’ra mim”. A recordação emocionada de Gisberta, a transsexual assassinada no Porto por nada mais que ser quem era, e os aplausos prolongados que a homenagem suscitou. Mas também a celebração da carnalidade, a ternura de um sambinha sussurrado no quase silêncio entre a multidão e os bem dispostos parabéns ao país que a acolhia, devidamente cantados, em dia de Portugal.

O concerto seguiu a estrutura das visitas que Elza Soares nos tem feito desde a edição de A Mulher do Fim do Mundo, mas não sentimos qualquer efeito de repetição. Com ela, a cantora cujo trabalho “é falar de transfobia, de mulher, da discriminação, da consciência”, como disse do palco, cada nova aparição é como que uma revelação. Ela cantará até ao fim e nós iremos acompanhá-la, passo a passo, canção a canção.

Sem contemplações

Se Elza Soares põe as palavras na denúncia de dores do mundo que deviam ser inconcebíveis no século XXI, os Death Grips, autores de um dos grandes momentos do festival, tacteiam-no ferozmente e expõem de forma caótica toda a violência que esconde.

A banda de MC Ride, vocalista, Zach Hill, baterista, e Andy Morin, responsável por teclados e programações, é uma avalanche de som despejada sobre nós sem contemplações. Ao longo de uma hora, não há pausas – os momentos entre canções são feitos de gritos, rufos demoníacos na bateria e ruído libertado por Morin para as colunas. Dir-se-á que são colisão em velocidade acelerada de hip hop futurista, hard-core visceral e os pesadelos da música industrial e electrónica, mas tal descrição não serve verdadeiramente aquilo que é um concerto da banda de Sacramento, Califórnia.

No escuro da noite, e no palco cuja iluminação permitia vislumbrar apenas o torso de MC Ride desenhado na penumbra, os braços de Zach Hill, sentado entre duas imponentes colunas de som, atacando a bateria com a fúria tumultuosa de um furacão, e os braços de Morin descendo sobre as teclas, os Death Grips foram um grito endemoninhado constante, sem contemplações. MC Ride vocifera e contorce-se, rappa com voz grave e grita versos que nem sempre compreendemos. Há vísceras e sangue nesta música, há uma insatisfação impossível de aplacar, um desconforto tornado arma de combate. É punk e é hip hop e é electrónica? É tudo isso e nada disso. “I keep giving bad people good ideas”, ouve-se no sample que introduz o álbum mais recente, Bottomless Pit. “It goes, it goes, it goes, it goes, guillotine!”, canta Ride, neurótico e ameaçador na Guillotine que encerrou o concerto depois de cerca de uma hora de som ininterrupto, de tumulto que o público acompanhou com surpresa, concentrado no que o palco revelava ou criando o seu próprio tumulto. A estreia da banda em Portugal ficou gravada em todos os presentes, na noite de sábado, entre as 22h e as 23h, no Palco . (assim com um ponto).

Hora e meia depois, Aphex Twin oferecia ao anfiteatro perante si, expectante com a chegada do revolucionário das linguagens electrónicas, um homem de total liberdade no gesto criativo, uma intensíssima experiência em som e imagem. Os sons aparentemente desordenados moviam-se caoticamente pelo espaço e colidiam entre si até desembocarem num momento de aparente serenidade, quando esboços da música ambiental em que primeiro fez nome pretendiam serenar quem ouvia. Ilusão clara, como ilusão era o que víamos nos ecrãs, os padrões digitais misturados com os rostos transformados do público – indefinidos entre expressões de êxtase ou de terror. Cada momento de aparente serenidade, cada momento em que o drum’n’bass surgia em contornos definidos ou o tecno simulava levitar até uma pista de dança etérea, era sucedido por nova e violenta desconstrucção.

Na edição de programação mais arriscada, fez sentido que a despedida no palco principal fosse protagonizada por alguém que, em vez de confortar, confonta e questiona, que mostra em tempo real, explicitamente, aquilo de que é feita a matéria da sua criação.

Enquanto Aphex Twin tocava, os Black Angels caminhavam no Palco . naquela sua passada lenta, opiácea, iluminada pela incadescência das guitarras. Mostravam as canções do recente Death song perante uma plateia bastante preenchida, mas recuavam também aos demónios rock’n’roll de The first vietnamese war. Equidistantes entre os Velvet Underground, ruído shoegaze, o blues xamânico dos Doors e um ritual psicadélico em imaginário cemitério índio, foram momento onírico para pesadelos nada assustadores – tudo nos faz bem naquela música, que agora, como em Life song, uma das canções do novo álbum, até se entrega a gentis planares Floydianos.

Pouco antes da meia-noite, aquele mesmo palco tinha sido cenário para uma estreia feliz. A dos regressados Make Up em Portugal. A sua primeira vida acabara em 2001, mas vemo-los em 2017 e é como se nunca tivessem desaparecido. São combo rock’n’soul disfarçado de activismo gospel e vestidos em impecáveis fatos de um dourado cintilante. Têm a liderá-los Ian Svenonius, o homem que não demora mais do que um minuto a erguer-se nos ombros do público para lhe lançar os seus gritos de libertação, “baby!” – “Can I hear you say yeah!”, gritava invariavelmente no final, e o público gritava com ele. Tendo a ladeá-lo dois membros da formação original, o guitarrista e teclista James Canty e a baixista Michelle Mae, cantou vários clássicos de culto, como Pentagon, Blue is beautiful ou Every baby cries the same, passou pelo hino gospel Wade in the water em versão garageira e foi o agitador de serviço mais delirantemente glamoroso que podíamos desejar. Pregou pelo fim das barreiras que nos separam – e depois sai mais um salto à James Brown e mais um pouco de dança yé-yé desgovernada -, deu fogo à elegância rock’n’roll da banda, inspirou e deixou um sorriso aberto em toda a assistência.

“Muito boas bandas aqui no Primavera Sound System”, começou Svenonius em mais uma das suas tiradas. “Mas nenhuma é como os Make Up. Elas só querem orgasmo, mas nós pensamos a longo prazo. A nove meses”, continuou. “Vamos ter um filho juntos”, anunciou então. E depois seguiu-se nova dança e mais uma grande canção de rock’n’roll bom de anca. O futuro estava garantido.

O  NOS Primavera Sound, colheita 2017, teve um pouco de Ian Svenonius. Acompanhar o presente de perto para que o futuro frutifique. A julgar pelos números recorde de assistência, não foi uma má escolha.

Notícia alterada às 17h45 para corrigir o nome do MC dos Death Grips

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