Donald Trump esfaqueado no Central Park? Não, é só teatro

Festival de Verão de Nova Iorque leva ao palco Júlio César, de Shakespeare, numa encenação em que o ditador romano que acaba assassinado no chão do senado é muito parecido com o Presidente norte-americano. Será que Trump também tem uma banheira dourada?

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O César de Shakespeare é um líder carismático, capaz de manipular os que lhe são devotos, e há quem veja nisso muitas semelhanças com Donald Trump Reuters/KEVIN LAMARQUE

Que o mundo da cultura (falemos só neste) não está satisfeito com o facto de Donald Trump ser o inquilino da Casa Branca não é novidade. Marchas e manifestações em praças e avenidas, campanhas cerradas nas redes sociais e discursos sucessivos nas mais diversas cerimónias de atribuição de prémios da indústria da música e do cinema são apenas alguns dos reflexos do desconforto que o Presidente dos EUA causa entre artistas plásticos, cantores, guionistas, escritores, actores, cineastas ou encenadores.

É precisamente do meio do teatro que vem agora aquela que pode ser lida como uma nova sátira ao actual chefe de Estado americano. A mais recente produção do Public Theater – Júlio César, de William Shakespeare -, que tem vindo a ser apresentada em ensaios abertos no Teatro Delacorte, em pleno Central Park, e que até 18 de Junho é um dos destaques do popular festival de Verão de Nova Iorque, Shakespeare in the Park, põem em palco um ditador romano que tem muitas semelhanças com Trump. Tantas que o facto já levou vários comentadores políticos de direita a manifestarem o seu repúdio pela peça e a defenderem que ela pode ser vista como um incitamento à violência contra o Presidente, escreve o diário The New York Times. O mesmo jornal que caracteriza o ditador desta produção do clássico do dramaturgo inglês como “um César loiro e petulante de fato azul, complementado por uma banheira dourada e uma mulher eslava e amuada”.

Diga-se em abono do rigor que a peça, apesar do seu nome, não tem Júlio César como protagonista e que, no centro da história, não está o assassinato de um líder, muito menos a sua glorificação. Também na presente encenação de Oskar Eustis, director artístico do Public Theater, Júlio César é uma tragédia sobre o poder, a honra, a amizade, sobre os dilemas que se vivem quando, por melhores que sejam os motivos, se cometem actos injustificáveis.

Sim, é verdade, César é assassinado por vários dos seus amigos e colegas senadores, na sequência de uma conspiração em que participam Cássio, o líder, e Bruto (este último é a personagem principal desta tragédia de Shakespeare baseada na História de Roma, à semelhança de António e Cleópatra e Coriolano), mas a mensagem que o texto deixa é de que este homicídio, por mais patrióticos que sejam os seus motivos, é a pior coisa que podia ter acontecido à República (em breve os senadores que em 44 a.C. assassinaram César e que queriam ser vistos como libertadores teriam a opinião pública contra eles graças a Marco António, que rapidamente chega ao poder).

Arte enfadonha

Procurando antecipar algumas críticas, e respondendo a outras, Oskar Eustis, o encenador, garantiu já que esta é uma peça sobre a fragilidade da democracia, um texto que nos mostra que as instituições que a asseguram e com que sempre vivemos, as que herdámos graças ao esforço de muitos que vieram antes de nós, podem desaparecer num instante. “Júlio César pode ser lida como uma parábola de aviso a todos aqueles que lutam pela democracia recorrendo a meios não-democráticos. Combater o tirano não significa imitá-lo”, disse Eustis, citado num documento que a companhia tem disponível no seu site.

Apesar dos esforços de retórica de Eustis (se são sinceros ou não, não nos compete a nós avaliar), não há como não tirar uma leitura política desta encenação. E num clima agitado como o que se vive nos Estados Unidos, dado a posições extremadas, esta peça funciona como um comentário de actualidade, levando alguns órgãos de comunicação conservadores a falar de uma “histeria de esquerda em relação a Donald Trump” que está a tornar a arte e os artistas enfadonhos.

Lembrando que o Public Theater é subsidiado pela cidade e Estado de Nova Iorque e por instituições federais, a National Review, revista conservadora, faz notar que é curioso que a esquerda aceite dinheiro do governo para levar à cena obras em que uma efígie do chefe desse mesmo governo é assassinada, acrescentando que seria melhor que o dinheiro dos contribuintes não fosse gasto em espectáculos feitos por aqueles que se dizem “oprimidos por monstros fascistas e filisteus” nem no financiamento (as entradas para o festival são grátis) dos milhares de “sorvedores profissionais de Chardonay” que se sentam nas bancadas para assistir, com os seus “óculos de marca”, e que seriam bem capazes de pagar o bilhete.

“Trump está a custar aos artistas tantos pontos de QI que pegar numa caneta nos dias que correm é o equivalente a estar sentado ao volante depois de 11 copos de vodka-tónica”, escreve Kyle Smith na National Review, acusando Oskar Eustis de ser absolutamente previsível.

Texto sempre actual

Jesse Green, crítico de teatro do New York Times, está entre os que não vêem qualquer problema nesta pretensa “Trumpificação” de Júlio César, até porque se há semelhanças, também há diferenças. Sim, é verdade, “a personagem de César é vaidosa, egocêntrica e demagógica, capaz de manipular de forma cínica os seus seguidores devotos”, mas é Shakespeare quem a descreve assim, garante Green. É também o dramaturgo que faz de César um herói militar e um líder carismático. No entanto, quando lhe oferecem, por três vezes, a oportunidade de se tornar imperador, o ditador escolhe permanecer senador, lembra o crítico, algo que “é mais de um George Washington do que de um Sr. Trump”.

A avaliar pelos relatos da imprensa americana, o público do Teatro Delacorte – um anfiteatro ao ar-livre com capacidade para 1800 pessoas – tem-se dividido entre os que se identificam totalmente com a encenação e a aplaudem com entusiasmo, os que que a repudiam por completo e os que acham que, no geral, está tudo bem até que César/Trump é assassinado em palco, numa cena carregada de movimento e que termina com o corpo estendido no chão depois de muito esfaqueado, com a camisa ensanguentada.

Gregg Henry é o César loiro e histriónico; Corey Stoll é um Bruto negro e reflexivo; John Douglas Thompson o intempestivo Cássio, líder da conspiração; Elizabeth Marvel renega o género e transforma-se em Marco António, num papel muito elogiado pela crítica; e Tina Benko é a Calpúrnia que tantos vêem como Melania, mulher do Presidente dos Estados Unidos, já que é aqui apresentada como uma mulher eslava muito elegante, que parece aborrecer-se com (quase) tudo o que se passa à sua volta.

Independentemente das leituras e do lado da barricada que se escolhe, como em todos os textos do dramaturgo inglês, sejam comédias ou tragédias, a actualidade de boa parte do que se ouve é inquestionável. Pegue-se, por exemplo, no diálogo entre Cássio e Bruto depois do assassinato de César – é aí que o primeiro se pergunta quantas vezes se repetirá aquela cena em Estados ainda por nascer. No caso de alguém se questionar a respeito, o encenador esclarece: “Nós não acrescentámos nenhumas linhas [ao texto]. É tudo Shakespeare.”

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