O que se passa com o transporte aéreo nos Estados Unidos? E na Europa?

O ambiente atual é dominado por um clima em que o lucro é o único objetivo imediato.

Recentemente, a televisão mostrou imagens de um passageiro a ser arrastado à força do interior de um avião americano, para o substituir no voo por um funcionário, decidindo recorrer a agentes policiais para o expulsar, tarefa que estes levaram a cabo com notório zelo, causando a maior perplexidade a violência utilizada.

Notícias deste género afetam a imagem de toda a indústria, tornando-se indispensável, em especial às próprias companhias de aviação, compreender o que se passou para que situações semelhantes não se repitam no futuro.

Qualquer irregularidade, tenha origem na companhia de aviação, nos aeroportos ou noutros serviços ou empresas ligadas à operação ou devidas a causas naturais, deve sempre ter um tratamento rigoroso e transparente. Tendo a viagem como base um contrato entre o cliente e a companhia de aviação, esta é a maior interessada no apuramento das causas que deram origem à irregularidade, garantindo que se mantem a confiança dos clientes. Pela própria natureza do transporte aéreo, qualquer irregularidade desencadeia normalmente consequências em “bola de neve”, suscitando a atenção da comunicação social e o interesse dos poderes políticos, o que justifica cuidados acrescidos.

Este “incidente” deve ser analisado à luz do atual grau de concentração do transporte aéreo nos Estados Unidos, que atingiu uma situação de oligopólio, em que quatro companhias (American Airlines, United Airlines, Delta e Southwest) dominam 83% da totalidade do mercado, provocando uma evidente degradação das condições de concorrência. Quem já fez voos internos naquele país experimentou certamente um nível de qualidade muito inferior ao que existe noutras latitudes, em especial na Europa.

Recentemente, o jornalista americano Fareed Zacharia defendeu no seu programa GPS que, pelos seus resultados, o “modelo de consolidação seguido não serve aos Estados Unidos”. Para chegar a esta conclusão socorre-se, entre outros fatores, do ranking Skytrax, no qual se constata que a posição das companhias americanas não condiz com a importância do país. A Delta está em 35.º lugar, a United no 68.º, a American no 77.º e a Southwest está fora do top-100.

Recordo tempos, não muito longínquos, em que companhias americanas como a Pan Am ou a TWA (que voavam para Portugal) eram apontadas como exemplo de confiança e qualidade. O ambiente atual é dominado por um clima em que o lucro é o único objetivo imediato, independentemente de quaisquer consequências. De acordo com indicadores da IATA, as companhias americanas ganham em média 20 dólares por passageiro, enquanto as europeias não passam dos 5,5. Esta disparidade não reflete um maior grau de eficiência, mas antes uma situação em que o passageiro deixou de estar no centro da atividade.

A satisfação do cliente sempre foi um objetivo essencial nesta indústria, pagando-se, mais tarde ou mais cedo, quando este princípio é esquecido. Foi o que sucedeu neste caso, em que um “incidente” operacional se transformou num grave problema de comunicação que se arrastou demasiado provocando danos enormes à companhia afetada, tanto na sua reputação como no valor das suas ações.

Atualmente, os ritmos e condições de trabalho agravaram-se muito, com acréscimo do desgaste físico e psíquico. Mas o próprio CEO da companhia confirmou que “os nossos trabalhadores seguiram os procedimentos estabelecidos”, assumindo que “nós vamos trabalhar para corrigir o problema”. Aliás, em consequência do sucedido, o CEO, que foi nomeado pela PRWeek “Communicator of the Year”, viu-se forçado a renunciar à passagem em 2018 para charmain da companhia.

E a Europa? Está bastante melhor se utlizarmos como medida o ranking Skytrax, pois encontramos uma dezena de companhias europeias entre os 30 primeiros lugares. No entanto, é reconhecido também que, fruto de um ambiente competitivo mais equilibrado, oferecem em média um serviço de maior qualidade com tarifas mais equilibradas.

Mas não devemos esquecer que a Comissão Europeia decidiu no início dos anos 1990 copiar o modelo de liberalização dos Estados Unidos, tendo, para atingir o objetivo político assumido de concentrar a atividade em apenas três ou quatro companhias, nomeado um “comité des sages” para dar fundamento a esse objetivo.

Formado maioritariamente por políticos em final de carreira, este comité cumpriu a encomenda mas a realidade encarregou-se de o contrariar. Embora as mudanças verificadas tenham provocado a morte de muitas companhias (a própria TAP esteve à beira do abismo), duas décadas passadas a maior virtude do transporte aéreo europeu é, sem dúvida, a sua diversidade.

Mas é necessário aprofundar o debate sobre os atuais modelos, pois pressionando permanentemente a redução dos custos corre-se o risco de se atingir uma situação perigosa. É visivel que o modelo low-cost, a pretexto de um muitas vezes suposto nível tarifário mais baixo, força uma mudança de paradigma em que a tarifa corresponde apenas ao serviço base, sendo todas as outras componentes pagas à parte. Ao mesmo tempo, a pretexto de serem determinantes para o crescimento dos mercados turísticos, algumas companhias low-cost têm beneficiado continuamente de apoios públicos em vários países europeus que distorcem a concorrência, proporcionando-lhes enormes vantagens face às companhias “tradicionais”.

Finalizando, faço referência a algumas opiniões de que o verificado nos Estados Unidos não teria acontecido se não fosse permitida a prática do overbooking. Se é verdade que deve haver um cuidado especial com a sua prática, não é aí que reside o problema. Normalmente, o histórico de passageiros que desistem da viagem sem avisar a companhia permite, com algum grau de certeza, alargar um pouco a lista de passageiros. Mas o overbooking pode ser também útil para os próprios passageiros que têm, desta forma, a possibilidade de efetuar viagens, muitas vezes de emergência, que já não poderiam ser reservadas.

Mas, nestas condições, o que se deve exigir às companhias é que estas façam uma utilização que siga com rigor o histórico dos voos em situações idênticas no passado para tornar a sua aplicação o mais fiável possível, evitando-se situações de maior risco, tornando o overbooking uma situação de aplicação excecional.

O autor escreve segundo as normas do novo Acordo Ortográfico

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