Abdellatif Kechiche vai leiloar a Palma de Ouro por A Vida de Adèle para financiar o próximo filme

Para conseguir os fundos necessários ao acabamento da pós-produção de Mektoub, My Love, a companhia de produção e distribuição Quat’Sous coloca em leilão a memorabilia relacionada com o filme anterior de Kechiche, a triunfal e polémica Palma de Ouro de 2013.

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Abdellatif Kechiche vai leiloar a Palma de Ouro que recebeu em 2013 por A Vida de Adèle para ajudar a financiar o seu próximo filme, Mektoub, My Love, cuja produção ficou num limbo devido a “dificuldades financeiras” — a notícia é do Hollywood Reporter. Mektoub, My Love, que adapta um romance de François Bégaudaud, La Blessure, é um díptico, e estava em pós-produção quando a linha de crédito bancária — pelo Cofiloisirs, uma das duas instituições bancárias que financiam o cinema francês — foi, subitamente, interrompida.

“Para conseguir os fundos necessários ao acabamento da pós-produção sem mais demoras, a companhia de produção e distribuição Quat’Sous coloca em leilão a memorabilia relacionada com o trabalho de Kechiche”, lê-se numa declaração da sociedade, na quarta-feira, mas ainda sem informação sobre o local da venda. “Os objectos disponibilizados vão da Palma de Ouro (Festival de Cannes 2013) às pinturas a óleo que desempenhavam um papel central em A Vida de Adèle” — quadros pintados por uma das duas personagens principais.

Segundo o Hollywood Reporter, uma fonte ligada ao realizador não precisou a quantia necessária para acabar o filme. Nem o realizador estava disponível para comentar a decisão, embora o Hollywood Reporter assinale que este tipo de gestos, intempestivos, têm a sua assinatura — lembrando, por exemplo, a polémica que irrompeu entre o realizador e as suas duas actrizes, Adele Exarchopoulos e Lea Seydoux, logo a seguir a uma Palma de Ouro que os juntou aos três, emocionados, no Palais des Festivals de Cannes, e depois de declarações das actrizes a criticarem os métodos do realizador, com quem não quereriam trabalhar de novo; Kechiche responderia com uma carta aberta a Seydoux, chamando-lhe “arrogante criança mimada”. Tinham estado em palco, a chorar e abraçando-se, em 2013. O júri da competição desse ano quis, com o inusitado prémio aos três, homenagear não apenas o trabalho do realizador, mas das duas actrizes, Léa e Adèle, nesta adaptação da novela gráfica, Le Bleu est une couleur chaude, de Julie Maroh, que conta a educação sentimental e sexual de uma rapariga, no filme chamada Adèle, a partir do coup de foudre por uma Emma de cabelos azuis. Mas poucos dias depois, vieram os ressentimentos, declarações das actrizes a dizerem que tinham sido utilizadas, que Kéchiche era um manipulador, que a rodagem fora um inferno.

Ao Ípsilon, numa entrevista realizada em Lisboa, onde o realizador veio apresentar a estreia portuguesa do filme, Kechiche, sem querer mergulhar na polémica, concedia que há um horizonte de utopia no seu cinema, que o fracasso e a derrota fazem parte da narrativa, e que o efeito de ressaca do pós — A Vida de Adèle era a demonstração disso mesmo. A prova, concretamente, de um fosso entre as classes. Dizia Kechiche: “O que pertence à chamada classe popular será sempre o complexado, porque depende dele, mesmo em sonhos ou pelo seu esforço, tentar atingir outros patamares, nem que seja pela mão de outro; mas acaba por nunca atingir o objectivo, porque essas classes são constituídas por pessoas que, mesmo inconscientemente, edificaram um muro que impossibilita os outros de pertencerem. Acontece até nas relações amorosas: mesmo que a atracção seja única e simplesmente física, quando essa deixa de existir, volta à tona a diferença entre as classes.”

Mektoub, My Love está assombrado. Era um dos filmes esperados para a competição de Cannes 2017, seria o regresso do cineasta depois do seu triunfo, ali, há quatro anos, mas dias antes do anúncio oficial o realizador franco-tunisino explicava por que não estaria na Croisette. Adaptando La Blessure, la vraie, livro em que François Bégaudau (o mesmo de A Turma, de Laurent Cantet) contava o Verão dos seus 15 anos, a rodagem foi levando a adaptação para uma saga familiar que se concluiu em dois filmes, não um — o que levantaria problemas de direitos a ser resolvidos pelos tribunais franceses, por isso Les dés sont jetés e Pray for Jack, títulos de cada um dos tomos que formam Mektoub, My Love, não poderiam ainda ser vistos. “Assinei contrato com vários partenaires financeiros. Comprometi-me a entregar um filme. À chegada, há dois. Isso sai do quadro normal, o que coloca uma série de problemas com os contratos.”

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