A Europa, mais uma vez, confrontada com o imprevisto

Trump e o "Brexit" funcionaram como uma espécie de electrochoque que obrigou a Europa a acordar para uma realidade mundial que não lhes é favorável.

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1. Talvez nada contribua mais para o sentido de união entre os europeus do que um atentado terrorista. Não é apenas a solidariedade. É também a convicção de que estamos perante uma ameaça comum que apenas podemos tentar enfrentar em conjunto. O Reino Unido sofreu três atentados em três meses. A campanha eleitoral foi interrompida duas vezes: depois de Manchester e depois de Londres. Ontem, a oitava vítima da London Bridge, caída ao rio, era um cidadão francês. Londres é a cidade mais cosmopolita do mundo. O centro de Paris está a duas horas do centro de Londres, via Eurostar. Os europeus partilham o mesmo modo de vida, a mesma liberdade, a mesma prosperidade, os mesmos valores. Se há momentos em que o "Brexit" parece ser a decisão mais estúpida do mundo, são precisamente estes. Os britânicos votam amanhã numas eleições que, se serviram para alguma coisa, foi justamente para provar até que ponto o "Brexit" baralhou os dados da política britânica, tornando o seu futuro imprevisível.

2. O segundo acontecimento que sublinhou a traço grosso a inoportunidade do "Brexit" foi a eleição de Donald Trump. O Governo de Theresa May acreditou que os EUA seriam uma alternativa à Europa. Foi a Washington em Janeiro e veio de lá convicta de que obteria um acordo de comércio com os EUA, utilizando-o para pressionar Bruxelas. Não previu até que ponto Trump dinamitou as relações dos EUA com a Europa, nos mais variados domínios. Acabou o tempo em que o seu país foi a ponte entre as duas margens do Atlântico. Basta lembrar que o Presidente americano tentou convencer Merkel a negociar um acordo comercial entre os dois países e que a chanceler levou imenso tempo a explicar-lhe que a União Europeia tinha uma única política comercial.

Theresa May acreditou que o poder militar do seu país seria uma óptima moeda de troca para obter outras concessões. Enganou-se. Não porque a Europa esteja em condições de o dispensar. Mas porque o efeito Trump levou Berlim, Paris e muitas outras capitais a perceberem que teriam de fazer mais pela sua própria segurança. May não estará sentada à mesa onde se tomam as decisões, o que faz toda a diferença.  

3. Os conservadores britânicos acreditaram que facilmente poderiam contar com aliados para ajudar a defender as suas posições. Como escrevia a Economist, o Conselho Europeu de 29 de Abril aprovou as linhas gerais do mandato para a negociação em cinco minutos. Donald Tusk chegou a dizer que tinha sido “muito mais fácil manter a unidade entre os 27 do que alguma vez chegou a pensar”. Para os países de Leste, que viram em Londres um aliado, a protecção europeia e a ajuda económica pesam hoje muito mais. Os atlantistas, da Holanda à Dinamarca passando por Portugal, não iriam nunca bater-se por uma decisão que consideram suicidária. Os países que estão fora do euro preocupam-se com a diminuição da sua capacidade para influenciar as decisões da Zona Euro, com a saída do Reino Unido, que era um peso pesada. Como escreve Caroline de Gruyter do European Council on Foreign Relations, a maior preocupação em várias capitais europeias “está em que medida o 'Brexit' vai alterar a relação de forças entre os que ficam.” Será um inevitável reforço do poder da Alemanha, apesar da eleição de Macron.

4. Finalmente, May errou completamente sobre o estado de espírito de Berlim. Acreditou que os alemães estavam mais preocupados com o mercado para onde vendem mais BMW do que com a unidade da Europa. Enganou-se redondamente. Escreve Christian Odendahl no Guardian: “A coesão, a unidade e a estabilidade da União são mais importantes para a Alemanha do que qualquer coisa que os britânicos lhe possam oferecer”. Talvez May não tivesse prestado a devida atenção à forma de agir da chanceler. Ela acredita que a integração europeia é do interesse estratégico do seu país, ao ponto de abdicar de algumas exportações. Já o tinha provado quando liderou com Obama a resposta à crise ucraniana. “As grandes empresas alemãs há dois anos que pressionam o Governo contra as sanções à Rússia – sem qualquer efeito”, escreve Charles Grant, director do Center for European Reform

5. May não conseguiu encontrar um discurso convincente para levar por diante o "Brexit". Envolveu-se numa guerra verbal com Bruxelas sobre a agenda das negociações, prometendo um hard Brexit. Bruxelas já avisou que, à cabeça, quer garantias sobre o destino dos europeus que vivem no Reino Unido. May promete uma “Global Britain”, negociando acordos com os seus grandes e pequenos parceiros. Esqueceu-se de que os global traders de hoje pertencem a outra categoria: chamam-se China, Índia, Estados Unidos e União Europeia. Qualquer potência europeia, incluindo a Alemanha, é demasiado pequena para este jogo de gigantes.

5. Os europeus começaram por ver nestas eleições um sinal positivo. Preferiam um governo forte e estável para uma negociação que não ficasse dependente das facções radicais que ainda existem nos Conservadores. A campanha deu da primeira-ministra uma imagem de fraqueza. Ninguém considerou a hipótese de uma vitória de Jeremy Corbyn. O que farão perante este cenário, ainda improvável mas não impossível?

Trump e o "Brexit" funcionaram como uma espécie de electrochoque que obrigou a Europa a acordar para uma realidade mundial que não lhes é favorável. Foi o que Merkel disse em Munique, lembrando que a Europa já não pode confiar “completamente” nos EUA para garantirem a sua segurança. Depois de quase dez anos de crise profunda, a Europa parece atravessar agora um bom momento. A sua economia está finalmente a crescer (enquanto a britânica está a dar os primeiros sinais de arrefecimento), a sua presença na cena internacional tende a afirmar-se face ao desastre de Trump. Precisava do Reino Unido. Mas não se vê como é que o Reino Unido não precise ainda mais dela.

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