Romance-reportagem a partir da casa dos mortos

Evocação do cárcere, reportagem e memorialismo debatem-se entre si, em O Quarto Enorme. Uma descida aos infernos da perda de individualidade, ou a prisão como limite máximo imposto ao ser humano.

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A construção do livro aponta para um encadear de nexos que se questionam, que se põem em causa

Na origem de O Quarto Enorme está a pena de prisão que E. E. Cummings cumpriu no campo de concentração francês de La Ferté-Macé, em Orne. Entre 21 de Setembro e 21 de Dezembro de 1917, “na impecável e absolutamente admirável desolação de La Ferté e do Outono da Normandia Celina” (p.172), Cummings conheceu a agrura de uma estação infernal. O encarceramento fora devido a um imperativo de consciência: o poeta conhecera William Slater Brown quando ambos rumavam ao Velho Continente, como voluntários na Primeira Grande Guerra, ao serviço dos Norton-Harjes Ambulance Corps­  uma rota também seguida por Hemingway e Dos Passos. Em cartas enviadas para os EUA, Brown exprimira opiniões pacifistas e nada abonatórias em relação ao Exército francês­  matéria tida por suficiente para acusações de traição. E. E. Cummings manteve-se leal ao amigo, recusando-se a esclarecer o caso, o que lhe garantiu destino semelhante ao de Brown. Em eu:seis inconferências (Assírio & Alvim, 2004), Cummings sintetiza o caso com característica fleuma: “eu estava internado num certo campo de concentração, com um bom amigo chamado Brown que havia conhecido no barco para França­  ele, como eu próprio, tendo-se oferecido como voluntário para conduzir ambulâncias”. Em O Quarto Enorme, o relato é ainda mais contido. Perante a inquisição das autoridades, o narrador limita-se a uma justificativa oblíqua: “Porque o meu amigo tinha escrito umas cartas,disse-lhe eu” (p.66).

Para dar expressão ao universo fechado e opressivo que centraliza a narração, Cummings serve-se da própria mancha tipográfica do texto, “de certo modo espelhando o mundo concentracionário da narrativa” (p.8), como adverte o tradutor José Lima, na sua “Nota” inicial. Um dos aspectos, de resto, em que a prosa e a poesia de E. E. Cummings encontram pontos de contacto. “A utilização de closing up, isto é, da abdicação do espaço entre um sinal de pontuação e a palavra que se lhe segue”, escreve Cecília Rego Pinheiro (livrodepoemas, Assírio & Alvim, 1999), “constitui outra prática corrente nos poemas de Cummings, com repercussões a nível rítmico.” Outro tradutor da poesia de Cummings, Jorge Fazenda Lourenço, aponta, em O Quarto Enorme, a “acentuada subversão sintáctica, tão característica da sua poesia, e onde o insólito de certas imagens aparenta o surrealismo” (xix poemas, Assírio & Alvim, 1991). O ritmo que resulta desta prática torna-se convulsivo, acelerado, frenético. Um dinamismo que se articula com o predomínio da “acção” sobre a “análise”. Palavras como “cinético”, “cinese” e formas cognatas repetem-se, aliás, ao longo de O Quarto Enorme. Como se a reflexão se fundisse na própria malha da narração, não havendo uma separação efectiva entre narrar e repensar. De resto, o próprio Cummings clarifica a sua recusa de um registo demasiado preso à sequência ordeira de factos e dias­  “não me proponho infligir ao leitor um diário da minha alternância entre vida e não-existência em La Ferté­  não porque tal diário acabaria por o aborrecer indescritivelmente,mas porque o método de um diário e de uma cronologia nunca poderia reflectir a ausência do Tempo” (p.127).

Ao longo de O Quarto Enorme, vamos percebendo, em diferentes graus de intensidade, como o prisioneiro é extirpado de qualquer apêndice que o relativize e, portanto, humanize. Cada um deve ser um bloco absoluto, sem sinais exteriores de individualização. O narrador relata a recusa de um lápis, ou mesmo de uma bengala, propriedade sua­  porque um preso não pode ter bengala. Recordando a sua condição ex-humana, Cummings pode mesmo afirmar o ponto mínimo que lhe permite a seguinte nota: “as paredes, meu único interior” (p.45). Mais tarde, um lápis obtido e o papel cuja obtenção nunca chega a ser esclarecida, conferem um laivo de humanidade ao preso Cummings. Em O Quarto Enorme vão sendo registados instantâneos de pessoas, objectos e recantos, em desenhos reproduzidos nesta edição. Essa instantaneidade é também procurada pela linguagem verbal. “Quando este livro se escreveu a si próprio, eu”, recordaria Cummings, em eu:seis inconferências, “observava uma ínfima proporção de algo incrivelmente mais distante do que qualquer sol;algo mais inimaginavelmente vasto do que o mais prodigioso de todos os universos”.

O autor procura com insistência gerar efeitos de simultaneidade entre leitor e narrador­  “E foi esse o meu primeiro relance,tal como o é o do leitor” (p.199)­ , porque lhe interessava captar a impressão de relato com algo de jornalístico. Ainda que, como é óbvio a quem leia O Quarto Enorme, atravessado por uma violenta pulsão desestruturante que, mantendo a ossatura, apresenta um corpo torturado e quase irreconhecível. Toda a construção do livro parece apontar para um encadear de nexos que se questionam, que se põem em causa. Como se o edifício estivesse em perpétuo risco de ruir. A ausência de “planta” e a resistência dos materiais formam o atrito fundamental para reproduzir esta experiência de aniquilação da dignidade e do próprio sentido de humano. Nos derradeiros estágios da sua provação, E. E. Cummings dirá mesmo: “Estou a dizer adeus. Não,não sou eu quem diz adeus. É na verdade outra pessoa,possivelmente eu próprio.” (p.325) Há uma urgência, que o autor se esforça por recriar e fortalecer­  “E agora preciso de escrever a crónica do famoso duelo” (p.251)­ , em que se pode notar o uso da forma verbal “preciso” e de uma presença como “crónica”, que denunciam esta actividade premente de resgate do passado.

O local onde o narrador se encontra não é, claramente Marselha. Macé, na fonética apressada dos polícias que haviam conduzido Cummings ao cárcere, torna-se uma corruptela do nome daquela cidade. Apenas um dos erros de percepção ou de interpretação que sulcam o rosto de O Quarto Enorme enquanto narrativa que está longe de enjeitar as rugosidades, as zonas obscuras, as imperfeições­  “o quarto até aí vazio e minúsculo tornou-se subitamente enorme; gritos,estranhos,pragas,risos,esticavam-no para os lados e para o fundo,aumentando-o até uma profundidade e largura inconcebíveis,à assustadora proximidade de um telescópio” (p.75). A incompreensão, o jogo com o absurdo e o logro são emanações de um contra-senso mais profundo: o da guerra e o de um aprisionamento por motivos de uma injustiça totalmente exterior a qualquer lógica. O próprio nome do prisioneiro é submetido a extirpação. Deturpação prosódica, articulatória: “‘Bon. Allors,vous vous ap-pel-lez QUI-MANGZ,n’est-ce-pas? Edouard QUI-MANGZ.”” (p.73) Tortura (involuntária?) do eu através do que nele há de mais íntimo e único.

O Quarto Enorme é o relato de uma experiência de horror; mas esta é apresentada com notável desprendimento. Cummings chega a mesmo a referir-se na terceira pessoa, ao identificar “os cativos mais endinheirados” (p.168). Publicado cinco anos depois do seu aprisionamento, o livro pode entender-se como uma narração em que o “efabulado” e o documental são indissociáveis. A honesta reportagem de um romance, portanto, ou a efabulação pungente de um documentário, eis O Quarto Enorme.

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