Estamos covfefe

Este não é um assunto doméstico dos EUA nem de qualquer outro país: infelizmente para nós, todos partilhamos o mesmo calhau flutuante no espaço.

O anúncio de Donald Trump sobre a saída do Acordo de Paris para o combate às alterações climáticas foi precedido por um sinal ainda mais funesto para o nosso futuro neste planeta. Há três dias, dois dos conselheiros supostamente mais sérios e responsáveis (ou menos lunáticos e fanáticos) da administração Trump publicaram um texto de opinião no qual tentaram justificar retrospectivamente a atitude do seu presidente durante a sua viagem à Europa. O parágrafo fundamental era este:

“O presidente partiu para a sua primeira viagem ao estrangeiro levando consigo uma visão muito clara: o mundo não é uma 'comunidade global' mas antes uma arena na qual as nações, os atores não-governamentais e as empresas agem e competem em proveito próprio. Em vez de negar esta natureza primitiva das relações internacionais, nós celebramo-la."

As ideias têm consequências. E uma das consequências que têm é criar caminhos para outras ideias e decisões que sejam coerentes entre si, mesmo que essa coerência seja perigosa. Ou seja, as ideias estabelecem entre si uma trajetória na qual o ponto de partida é essencial. Se acreditarmos que o mundo é uma comunidade global, esse princípio de base leva-nos inevitavelmente a assumir certos compromissos: numa comunidade, cuidamos uns dos outros; numa comunidade, há limites para o egoísmo; numa comunidade, preocupamo-nos com o futuro das próximas gerações.

Se acreditarmos que o mundo é uma arena, pelo contrário, passa a ser justificado comportarmo-nos como numa arena: numa arena, cada país é um gladiador envolvido numa luta de vida ou de morte; numa arena, para eu ganhar os outros têm de perder; numa arena, para eu sobreviver é-me indiferente se os outros têm de morrer ou se os vindouros têm de sofrer.

O mundo civilizado é, creio que não será preciso explicá-lo, aquela que se esforça por ser uma “comunidade global” e não aquele que se celebra como uma arena de gladiadores.

Nos próximos dias discutiremos quais serão as consequências da saída imediata dos EUA das fileiras do mundo civilizado. Felizmente, parece que nenhum outro grande país ou bloco regional, da China à UE, tem vontade de seguir Trump para aquele estado primitivo no qual, como dizia o filósofo, o destino dos humanos era viver uma vida “ruim, bruta e curta”. Portanto, apesar desta decisão aziaga, o mundo ainda tem uma hipótese de se safar.

Mas o pensamento que subjaz à decisão de ontem, esse continuará a pôr o mundo em risco. Um dos apoiantes de primeira hora de Trump, Jeffrey Lord, comparava a saída do Acordo de Paris ao "Brexit", ou seja, como “uma questão de soberania”. Ainda ontem Trump dizia que o seu país “não poderia aceitar interferência estrangeira nos seus assuntos domésticos”. É a isto que chegamos quando se generaliza no debate político uma ideia de soberania talvez admissível no tempo em que havia carroças e catapultas mas intelectualmente inconcebível no tempo dos automóveis e das bombas atómicas.

Como é evidente, este não é um assunto doméstico dos EUA nem de qualquer outro país: infelizmente para nós, todos partilhamos o mesmo calhau flutuante no espaço que é este planeta e todos respiramos do mesmo ar que Donald Trump. Ao decidir como decidiu, Trump ajudará a garantir que certas nações no Pacífico simplesmente percam o seu território e, logo, o seu direito a existir: onde está a soberania dessas nações que vão desaparecer? Onde está o seu direito a não sofrer interferência estrangeira?

O pior é que o tipo de pensamento que justifica esta decisão continuará a ter as suas consequências, no plano da guerra como do comércio, dos direitos humanos como do meio-ambiente. Com ideólogos como estes, estamos lixados. Estamos pior do que isso, mas nem há palavras que o descrevam — a não ser uma daquelas baboseiras que este infame representante do nacionalismo contemporâneo às vezes verte para o seu twitter. Estamos mesmo covfefe.

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