Santa Casa da Misericórdia deixa de acolher crianças de fora de Lisboa

As situações de emergência dos restantes 15 concelhos do distrito passam a ter de ser asseguradas por apoios da Segurança Social.

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A Santa Casa da Misericórdia de Lisboa acolhe cerca de 400 crianças por ano nas suas 21 casas de acolhimento Nuno Ferreira Santos

A Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML) vai passar a acolher apenas crianças em perigo da cidade de Lisboa. Ao mesmo tempo alarga o espectro das idades para acolher crianças, desde bebés recém-nascidos aos jovens de 18 anos. A partir de Julho, ou nos meses imediatamente a seguir, os restantes 15 concelhos do distrito passarão a estar de fora. Uma resposta alternativa terá de ter o apoio da Segurança Social como já acontece em todos os distritos do país.

Actualmente, nas 21 residências que tem em Lisboa, a SCML acolhe crianças até aos seis anos do concelho de Lisboa, e para além disso, recebe rapazes até aos 18 e meninas até aos 12 de todo o distrito de Lisboa a necessitar de uma resposta de acolhimento de emergência. As crianças e jovens de fora da cidade representam actualmente cerca de 100 dos 400 acolhidos todos os anos pela instituição. O PÚBLICO tentou obter informação, junto do Instituto da Segurança Social, que permitisse calcular a capacidade do Estado para se substituir à SCML e fazer face a esta mudança, mas não obteve resposta em tempo útil.  

Qualificar o acolhimento

“Não significa desinvestimento da Santa Casa", diz Rui Godinho, director para a Infância, Juventude e Família da SCML. "Pelo contrário, significa que vai haver um forte investimento para responder às necessidades efectivas das crianças e dos jovens. Este é um programa de qualificação do acolhimento", no âmbito do CARE – Capacitar, Autonomizar, Reconfigurar e Especializar. O programa, a ser aplicado em quatro anos, foi criado porque “a realidade do acolhimento não responde às necessidades das crianças”, sublinha. O plano DOM – Desafios, Oportunidades e Mudanças – lançado em 2008 para todo o país também visava aproximar o modelo de instituição ao ambiente familiar, mas foi suspenso em 2002.

O plano CARE, já aprovado para Lisboa pela SCML, será apresentado nesta quinta-feira, na Conferência CARE – Uma Estratégia integrada para a protecção e promoção dos direitos das crianças e jovens, no Centro Cultural de Belém. A secretária de Estado da Inclusão das Pessoas com Deficiência, Ana Sofia Antunes, estará na mesa de abertura e o provedor da SCML, Pedro Santana Lopes, encerrará a parte do evento dedicada a prestar homenagem ao juiz conselheiro Armando Leandro, que é desde 2005 o presidente da Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Protecção das Crianças e Jovens, por “uma vida ao serviço do superior interesse da criança”.

A qualificação do acolhimento faz-se através da adaptação das casas e da melhoria das competências das equipas, diz Rui Godinho. Haverá reforço do número de técnicos superiores e toda a equipa será supervisionada, duas vezes por mês. A supervisão será realizada por profissionais "seniores com competência clínica, capazes de entender a dinâmica emocional da criança".

Todos os colaboradores vão ter um plano de formação obrigatório de três anos. O objectivo é criar um modelo de “intervenção técnica com intencionalidade terapêutica”, adianta Rui Godinho. “As próprias regras da casa têm de ser terapêuticas", insiste. Muitas destas crianças carregam “marcas muito traumáticas e têm de aprender a encontrar esperança”.

A SCML prevê ainda aumentar o valor do apoio financeiro previsto na lei para criar incentivos à criação de uma bolsa de 100 famílias de acolhimento para a cidade de Lisboa. O objectivo é reduzir o universo de crianças e jovens em perigo acolhidas em instituições e aumentar o número das que vivem em famílias. “Estamos ainda a trabalhar no valor” do apoio a ser atribuído, mas estamos a pensar aumentar o valor [de 330 euros, previstos na lei] para adequar aos custos efectivos” do acolhimento de uma criança na família. “O valor pago deve ser o justo, sem lucro nem caridade.”

Sem marcas institucionais

As casas de acolhimento deixam de ter o nome à porta ou a faixa da SCML que a identifica como uma residência onde vivem crianças retiradas às famílias (porque sofreram abusos, maus tratos, negligência, ou estiveram expostos a comportamentos desviantes ou a violência doméstica); estas casas deixarão ainda de ter salas de visita para os pais – “porque os pais não são visita” – mas terão espaços onde as crianças e os pais possam interagir naturalmente – “ter privacidade mas com à vontade” – já numa fase reparadora da relação, acrescenta Rui Godinho. "Para a maioria das crianças, o projecto de vida é reintegrar a família."

E se essa opção não for no superior interesse da criança? "Haverá um protocolo de diagnóstico num prazo muito curto que permitirá que, em dois meses, seja avaliado o potencial da família biológica para exercer a parentalidade", diz Rui Godinho. "Se o resultado for negativo, procura-se uma família de adopção ou um apadrinhamento civil". No caso "de haver potencial" mas sem certezas absolutas, "adopta-se um plano intensivo para trabalhar as competências da parentalidade". 

Em quatro anos, o CARE pretende revolucionar o universo das casas de acolhimento para crianças e jovens em perigo, da SCML, mudando, além das equipas, as casas – algumas vão ser objecto de obras profundas ou remodeladas. Depois de “um diagnóstico muito profundo”, com entrevistas realizadas “a cada uma das crianças das 21 casas que a Santa Casa tem no concelho de Lisboa, e com todos os adultos, cuidadores, desde os técnicos superiores aos cozinheiros”, foi feito um diagnóstico e elaborado um plano para cada casa, explica o responsável que fala num "paradigma totalmente novo".

Dignidade e exigência

Em cada uma das residências de acolhimento da SCML, educadores, técnicos e auxiliares, deixam de usar bata. "Queremos tirar às casas todas as marcas institucionais", diz Rui Godinho. As casas vão ter cozinha própria e deixam de recorrer ao catering, serão criados planos de incentivo à leitura, promovidos por facilitadores.

Para os mais pequeninos, haverá programas para estimular as dinâmicas sensorial e emocional através de actividades lúdicas e música, e com as crianças do 1.º ciclo será formada uma “orquestra geração”. Nela, podem participar as crianças que estejam nas casas de acolhimento ou nas suas famílias acompanhadas pelas equipas da Santa Casa ou ainda os filhos dos funcionários. "Temos de olhar para estas crianças com a mesma dignidade e com a mesma exigência com que olhamos para os nossos filhos", conclui Rui Godinho. "Não são filhos de um deus menor."

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