Groucho Marx, T.S. Eliot, uma dúzia de cartas e um gato castrado

Um Nobel da literatura, snob e reprimido, quis uma fotografia de um dos maiores humoristas do século XX, abrasivo e insolente. Escreveram-se durante três anos antes de se conhecerem. Quando isso aconteceu, acabaram-se as cartas.

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T.S. Eliot e Groucho Marx trocaram cartas durante três anos DR

De longe é uma dupla improvável. Ao perto também. T.S. Eliot e Groucho Marx trocaram cartas? Sim, um dos mais importantes poetas do século XX, referência do modernismo num meio carregado de privilégios, correspondeu-se com um dos maiores comediantes de sempre, estrela de Hollywood e da cultura popular. Um americano do Missouri que se tornou mais inglês do que os ingleses e recebeu o Nobel da Literatura em 1948 tinha algo a dizer (e mais, queria ouvir o que tinha a dizer) a um filho de imigrantes nascido em Nova Iorque que, com os irmãos, fez sucesso nos palcos antes de conquistar o cinema nos anos 1920-30, quando o sonoro devia ainda muito ao mudo? Como é que isso aconteceu?

T.S. Eliot (1888-1965) era fã de Groucho Marx (Julius Henry Marx, de seu nome verdadeiro, 1890-1977) e escreveu-lhe em 1961, pedindo-lhe uma fotografia que mais tarde haveria de pendurar na parede. Foi precisamente com essa fotografia que começou o “equívoco” e se instalou uma certa “tensão” entre estes dois homens de temperamentos absolutamente diferentes. Um a favor da tradição e desprezando a maioria dos facilitismos da vida moderna. O outro pela vida moderna, fazendo humor ao ridicularizar aquilo que o primeiro valorizava. Um circunspecto e reprimido, o outro impulsivo e desbragado.

Foi Pedro Mexia, poeta e crítico literário que dirigiu a Cinemateca Portuguesa, admirador de Eliot e de Groucho, quem levou a correspondência entre os dois ao programa 9 Dias sobre Cartas, da Universidade de Lisboa, que convidou pessoas das mais diversas áreas a falarem de cartas que fizeram história, com remetentes ou destinatários ilustres como os monarcas Isabel II e D. Carlos, os realizadores Nanni Moretti e Joseph L. Mankiewicz, o músico Leonard Cohen, o político alemão Konrad Adenauer e o filósofo Jacques Derrida.

Na terça ao final da tarde, e com o volume The Groucho Letters sobre a mesa do auditório do Museu Nacional de História Natural e da Ciência, Mexia falou desta relação peculiar que produziu uma dúzia de cartas e que terminou quando os dois homens finalmente se conheceram, três anos depois de terem começado a corresponder-se, quando Groucho Marx aceitou o convite para jantar em casa dos Eliot, em Junho de 1964. Que se saiba, depois dessa noite os dois nunca mais se escreveram.

Nesse jantar, como nas cartas, cada um deles quis ser o que o outro era, explica Pedro Mexia. Groucho citou poemas de Eliot e quis discutir Rei Lear, Eliot quis levar Groucho a falar dos seus filmes e a rir das piadas que contava. “Parece que há um equívoco instalado entre os dois – Groucho quer ser um literato; Eliot quer ser engraçado.”

Eliot queria o “boneco”

Quando responde à carta de Groucho em que o comediante americano envia a sua fotografia de estúdio, numa pose formal, o autor de The Waste Land (1922) e Four Quartets (1943) agradece mas faz saber que esperava outra coisa, que preferia uma em que ele aparecesse de charuto, com o seu famoso bigode e grossas sobrancelhas. “Esse é o primeiro insulto que marca a relação dos dois – Eliot queria o boneco, a celebridade, não o Julius Henry Marx.” A esse seguem-se outros, de parte a parte, denotando um misto de respeito e hostilidade.

Só em 1963 o humorista lhe faz a vontade, enviando uma fotografia da personagem que encontramos em Duck Soup (1933) e A Night at the Opera (1935), lembrou Mexia, o que leva a uma carta entusiasmada de Eliot em que o também dramaturgo e crítico literário o informa de que em breve estará pendurada na parede entre outros dois amigos famosos, os poetas W. B. Yeats e Paul Valéry: “Você é a minha pin-up mais desejada.”

Groucho reage ao seu estilo, insolente e quase abrasivo, demonstrando o “lado agressivo” que sabia impor à comédia, sobretudo quando criticava os ricos e privilegiados.

Nas cartas que envia a T.S.Eliot faz questão de o lembrar, por exemplo, das suas origens americanas, que o poeta parece preferir esquecer (o comediante, que também não se orgulha das suas, faz o inverso, impondo-as constantemente aos seus leitores e espectadores).

Numa das cartas que Mexia considera mais incisivas mas também mais divertidas, Groucho lembra a Eliot que o seu primeiro nome é Tom (na realidade Thomas) e não T.S., o mesmo de um pugilista (Tom Gibbons) e de um Presidente americano (Thomas Jefferson), e que esse diminutivo se aplica a muitas coisas: “Já houve um famoso actor judeu chamado Thomashevsky. Todos os gatos se chamam Tom – a não ser que tenham sido castrados.”

É nessa mesma carta em que se dirige a Eliot como se ele fosse uma mistura de peso-médio, de gato (“bicho importante no imaginário do poeta”, acrescenta Mexia) e de terceiro Presidente dos Estados Unidos, que Groucho Marx ainda tem tempo para fazer uma série de considerações sobre a importância crescente do sexo no quotidiano e para acrescentar: “Estaria interessado em ler as suas ideias sobre sexo, por isso não hesite. Confie em mim.”

Sexo seria o último tema que Eliot pensaria discutir com Groucho ou com qualquer outra pessoa, diz Pedro Mexia: “Muitos biógrafos do Eliot gostariam de lhe pedir o que Groucho pediu e que sabia ser impossível – que falasse sobre sexo. A auto-repressão sexual está muito presente nos textos e na vida dele.” Muito já se escreveu, aliás, sobre a possível impotência do poeta e a sua eventual homossexualidade.

Groucho sabe que o tema do sexo vai incomodar Eliot, acrescenta o co-autor dos programas PBX (Radar/Expresso) e Governo Sombra (TSF/TVI24), sublinhando que as cartas estão cheias de “insultos de parte a parte que permitem uma leitura benigna”. Eliot também diz, por exemplo, que o merceeiro da sua rua ficará impressionado ao saber que ele conhece Groucho Marx.

Um bom escritor

Groucho começou por querer ser médico mas acabou a abandonar a escola ainda adolescente para, com os irmãos, trabalhar como artista de variedades. Humorista de grande inteligência, assim o descreve Mexia, tudo o que ele queria, na verdade, era ser um homem de letras e reconhecido como tal. “Eliot era o protótipo do intelectual branco, anglo-saxónico e protestante”, acrescenta o cronista do semanário Expresso. “Groucho era muito culto e sonhava que o vissem como um escritor, coisa que de facto era, e muito bom. Dizia que começou a ler muito porque era o filho a quem ninguém ligava nenhuma.”

Hoje, olhando para os escritos que deixou, e não apenas para os artigos que assinou na revista The New Yorker, Mexia não tem qualquer reserva em afirmar que, não sendo o gigante literário reconhecido pela academia que Eliot é, Groucho foi “um dos artistas que no século XX usou a palavra de forma mais criativa, anarca e inovadora”.

E isso quer dizer que neste “confronto” entre T.S. Eliot e Groucho Marx é o segundo que sai vencedor? Pedro Mexia, que admira os dois e não quer tomar partido, lá acaba por concluir: “Uma das fatalidades do humor é que quem tem graça ganha sempre.”

O programa 9 Dias sobre Cartas termina esta quinta-feira com uma sessão em que Marta C. Lourenço, subdirectora dos Museus da Universidade de Lisboa, falará sobre a correspondência entre o químico alemão A. W. von Hoffmann e o cientista português José Júlio Rodrigues.

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