Que a voz não te esmoreça, Éme

No novo Domingo à Tarde, o músico da Cafetra agarra na música popular portuguesa e concretiza-se como escritor de canções, coadjuvado por uma banda em pico de forma. Não queremos sair deste disco. O concerto de apresentação é esta sexta-feira na ZDB, em Lisboa.

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Desde o álbum anterior, Éme saiu da casa dos pais, percorreu o interior, a política entrou-lhe pela vida adentro Margarida Basto

Em 2016 morreu David Bowie, morreu Prince, morreu Leonard Cohen. Mas a João Marcelo, músico lisboeta de 25 anos conhecido por Éme, o que “bateu mais” foi o adeus de Adélia Garcia, a cantadeira octogenária da aldeia de Caçarelhos, Trás-os-Montes, no dia 31 de Dezembro de 2016, sem o chinfrim das redes sociais.

“Sei que são coisas diferentes, mas por que é que morrer a Adélia não devia bater?”, pensa Éme em voz alta. Descobriu-a através do documentário B Fachada: Tradição Oral Contemporânea (2008), de Tiago Pereira, que a filmou vezes sem conta para esse seu valioso arquivo em constante evolução chamado A Música Portuguesa A Gostar Dela Própria, depois de o etnomusicólogo Michel Giacometti ter chegado lá primeiro nos anos 60. “A forma como ela cantava aquelas músicas era muito única e ela não era nenhuma velhinha burrinha que não sabia que era única”, atira o músico. Pouco depois do adeus, Éme fez com Moxila uma versão para guitarra acústica e cavaquinho de Muito chorei eu no domingo à tarde, um dos cantares de Adélia, para A Música Portuguesa A Gostar Dela Própria (porque isto anda tudo ligado).

É essa versão – agora em coro, agora em grande na sua simplicidade e sinceridade – que fecha o novo e terceiro álbum de Éme, Domingo à Tarde, editado pela família Cafetra e apresentado esta sexta-feira na ZDB, em Lisboa. É o final e a síntese de um disco que tem um tempo e um lugar: domingo à tarde numa pastelaria (a da capa do disco é o Centro Ideal da Graça), essas coordenadas que fazem parte do ADN e do viver português, na cidade ou na aldeia (“Um brinde à manada/ Com bica na esplanada/ Tuga não tem nada/ Mas há tanto mar", ouve-se em Roma-Sé). “É uma cena muito tuga. Mesmo no Cinema Novo tinhas todas aquelas pastelarias, como a Vá-Vá”, diz Éme. “E não é algo romantizado porque é muito presente. Parece que consegues ter propriedade sobre isto.”

Domingo à Tarde chega-nos consciente do país onde está e do que veio atrás. Algumas canções – urgentes, necessárias, certeiras, como Puxa a patinha, Buraquinho, Roma-Sé ou Zequinha – colocam Éme directamente numa timeline de escritores de canções portugueses que vai de José Afonso a B Fachada. Sem negar a folk anglo-saxónica dos registos anteriores, aqui é a música popular portuguesa que se eleva. É com ela que Éme canta Portugal no seu encanto e no seu desencanto, na pele de um jovem adulto que lida com as dores de crescimento numa Lisboa varrida pela gentrificação, por rendas proibitivas em casas que tantas vezes mal se seguram de pé (Zequinha: “De volta a Lisboa/ Uma casa bonita/ Até era na boa/ Se eu fosse turista”).

A precariedade está lá ao acordar e ao deitar, ao lado dele e de muitos outros. Mas pelo menos há o amor – o arranque do disco, Sem roupa, é balada segura à voz e à guitarra, Éme transparente, canção dulcífica, tiro e queda. Mas pelo menos há os amigos – sem eles, banda em pico de forma, Domingo à Tarde não seria a mesma coisa: sem Mariana Pita (Moxila), nova e feliz contratação, no cavaquinho, nas flautas e no clarinete; sem Júlia Reis (Pega Monstro) na bateria e nas percussões; sem Lourenço Crespo (a solo, Iguanas) nos teclados; sem Miguel Abras (Putas Bêbadas) no baixo. E sem B Fachada, o toque de Midas na produção, enobrecida pela gravação de Eduardo Vinhas nos estúdios Golden Pony.

Liberdade palpitante

“Tem bué vida este disco, por isso é muito importante para mim”, conta Éme. Passaram dois anos e meio desde o álbum anterior, Último Siso, lançado em 2014. Muita coisa aconteceu. Éme cresceu. Saiu da casa dos pais, passou seis meses no Porto, começou uma vida a dois, deu concertos pelo interior do país, com pouco dinheiro no bolso e em sítios que “nem sabia que existiam” (Comboio, fulgurante, faz o resumo). “Andei por aí fora sozinho, a fazer o meu trabalho por tuta e meia. Numa pessoa com 20 e poucos anos isso muda muita coisa.”

Inevitavelmente, a política entrou-lhe pela porta adentro. “Estou numa fase em que as questões políticas têm uma influência mais directa em mim”, confessa Éme. “Claro que tenho uma rede de apoio se algo correr muito mal, mas antes não pagava impostos, não pagava uma renda, não sentia que estava numa cidade que me diz que se calhar não sou daqui porque não tenho dinheiro para estar aqui por minha conta. Antes sabia quais eram as minhas ideias políticas, mas não tinha de lidar com a estrutura, não percebia tão bem o que se passa à minha volta.”

Entretanto, a dieta musical de Éme mudou também, o que se reflecte no novo disco. Muita música popular portuguesa, de José Afonso a José Almada (que B Fachada sampla e cita na canção Camuflado, do seu último registo homónimo), passando pela tradição oral do interior do país documentada n’A Música Portuguesa A Gostar Dela Própria. Sem esquecer uma aproximação à música popular brasileira, de Caetano Veloso a Noel Rosa. “Eu não venho de uma casa onde se ouvissem cenas do Zeca ou do José Mário Branco. Sempre ouvi música de vários sítios, mas mais americana do que outra coisa qualquer”, refere Éme.

A esta viragem de direcção não é alheio o reencontro de uma jovem geração de músicos com a língua e a música portuguesas. Muitos foram influenciados, directa ou indirectamente, pela FlorCaveira e por B Fachada. Mas fora desse circuito há outros casos, como a editora Príncipe Discos, onde se reinventa a lusofonia com música electrónica, músicas dos PALOP e música portuguesa – quem já viu um set de Nídia Minaj lembrar-se-á com certeza da chapada na cara que é ouvir a sua remistura de Pimba pimba, de Emanuel.

O que muitos tentam fazer – e Éme consegue-o neste disco – é “pegar no património” para começar a construir algo seu. “Muitas vezes espezinhamos coisas da música tuga, ou achamos bimbo olhar para trás, mas também achamos bimbo olhar muito para a frente, ter confiança”, afirma Éme. Dizíamos que Domingo à Tarde chega-nos consciente do país onde está e do que veio atrás. Sim, mas sem medo de olhar para a frente, de frente, e sem turismo pelo passado. Com respeito, mas sem vacas sagradas (“E eu já sei que não sou bom como outros foram/ Mas não quero saber se os mortos me adoram”, já cantava ele no primeiro álbum a solo, Gancia, quando ainda lhe faltavam “força, jeito e procura”). “O que os outros fizeram é para todos, não é só para eles”, observa Éme. “Por exemplo, o Zeca ser o inigualável, o génio… Para quem vem a seguir dá medo do futuro. Tu podes ir buscar uma cena antiga e meter na tua canção, à tua maneira. Os músicos são gente, não é preciso ter medo.”

Outra peça central para Éme, que caracteriza muito o cosmos Cafetra e vizinhança (Maternidade, Xita Records, Spring Toast), é “admirar os colegas”. “A minha forma de aprender é trabalhar com quem está perto”, sublinha o músico, referindo em particular a influência de Lourenço Crespo (que, além de Moxila, faz o aquecimento do concerto na ZDB). “O disco do Lourenço [Nove Canções, de 2016] abriu-me muitos horizontes na forma como eu podia cantar e escrever letras. Uma pessoa percebe que se calhar não precisa de dar o tom auto-condescendente e que pode mesmo pensar em dar o máximo.”

Em Domingo à Tarde, Éme dá o máximo e sai-se gloriosamente bem. Nas melodias, nas letras, concretiza-se e dá o salto. É lindo ver Buraquinho a acontecer: entrada em crescendo de guitarra brumosa, coros e flauta a juntarem-se num travelling (e nesta altura já estamos a pensar em José Mário Branco, tudo certo no sítio certo, com aquela tensão que faz estremecer), refrão monumental com a bateria a servir de maestro – isto é uma orquestra e quem diz o contrário é tolo. Tanto Buraquinho como Puxa a patinha são actualizações de duas músicas integradas numa edição conjunta da Cafetra de 2015, Ou Sim ou Sopas, que ganham aqui mais camadas e ainda mais ressonâncias da música popular portuguesa dos anos 70.

Em Puxa a patinha, sobre a saída do país do irmão de Éme e a emigração jovem (“Tenho bandeira/ Pronta para hastear/ Bagaço bem servido/ Para não mais lembrar/ O irmãozinho, o meu amor/ Vão embora e não vão voltar”), sente-se a influência da música brasileira na flauta de Moxila, que forma uma frente de ataque com o teclado de Lourenço Crespo. Parece que foram feitos um para o outro: ouçamos Roma-Sé, canção-orvalho a roçar a perfeição, a amizade para neutralizar a ansiedade. Antes, torcemos o nariz em Uma Voz/ Chá com mel, canção viscosa e ligeiramente alucinada em que Éme se estreia nos teclados e ensaia um momento de fuga no disco. Podia não estar aqui, mas vá, não ofende – depois até nos faz entrar de novo no disco com atenção redobrada.

E assim seguimos de encontro a Zequinha, outra delícia, jubilante, que traz à memória Cantigas do Maio e Com as minhas tamanquinhas, de José Afonso, com algumas verdades sobre a subserviência no trabalho e essa coisa eterna do comer e calar. A liberdade palpita forte neste disco, e em Joana, aurífera, comunal, é selada com o verso, que tem tanto de excessivo como de vital, “Eu e tu/ Para quê esperar a aprovação?/ Lei é do cu/ E liberdade é do coração”.

Em Domingo à Tarde, repetimos, ele dá o máximo e sai-se gloriosamente bem. Que a voz não te esmoreça, Éme.

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