A Eurovisão é uma "montra enormíssima", mas vende? O que significa uma vitória no festival

Prémio pode criar só um aumento momentâneo de popularidade, uma carreira local ou ser o nascer de um fenómeno como os ABBA ou Céline Dion.

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Paulo de Carvalho venceu em 1974 com E depois do adeus DR
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Os ABBA foram dos maiores sucessos da história da Eurovisão DR
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Celine Dion teve no festival a rampa de lançamento para uma rara carreira internacional Reuters

Os casos de verdadeiro sucesso da Eurovisão contam-se pelos dedos de uma mão e chamam-se ABBA e Céline Dion. Dois dedos erguidos em V, vitórias duradouras e com pelo menos uma canção que ficou para a história — Waterloo, do quarteto sueco. São os dois nomes unanimemente citados quando se fala de carreiras lançadas ou feitas pela participação no festival europeu, aos quais se juntam muitos êxitos locais, one hit wonders ou notas de rodapé da história da música. O novo vencedor do Festival Eurovisão da Canção já está a viver o seu esperado impulso de popularidade. Mas dura?

“Nos anos 1960 era muito frequente o lançamento de carreiras internacionais na Eurovisão”, lembra Carlos Portelo, perito no Festival da Canção português e da sua apoteose europeia. A esse tempo, em que muitos concorrentes eram nomes já consolidados nos seus países, como Sandie Shaw e Puppet on a String em 1967, sucedeu-se uma nova fase. Novatos que viam ali o dealbar de uma carreira. Dois fogachos, quando “os ABBA nasceram no Festival da Eurovisão de 1974, aquele em que Portugal teve E Depois do Adeus do Paulo de Carvalho”, que depois “souberam cimentar a sua carreira”, lembra Carlos Portelo, e Céline Dion, que até 1988 “não era conhecida e a sua vitória de Eurovisão revelou-a - a canadiana representou a Suíça com Ne partez pas sans moi, aos 20 anos, e tal como os ABBA, tinha um breve e discreto percurso até então.  

Dois vencedores a que o e gestor do site Festivais da Canção junta, num longo rol de nomes, datas e títulos que cita de cabeça, Lara Fabian, 4.º lugar para o Luxemburgo no ano de Dion e para quem o palco da Eurovisão foi a rampa de lançamento definitiva. Mas estes são dois níveis distintos de fama — os nomes que todos conhecem, a condizer com a ambição global da Eurovisão, e aqueles que só alguns reconhecem. Aqueles que vendem dezenas de milhões de discos e os que vendem milhares. Estrelas ou carreiras locais.

Há ainda os britânicos Bucks Fizz (1981), a americana Katrina and the Waves a representar também o Reino Unido (1997) ou o italiano Toto Cutugno em 1990 (ambos já com carreira antes da Eurovisão), e nomes que, talvez por ainda recentes, ficaram na cabeça como o travestismo de Conchita Wurst ou os metaleiros Lordi, também já com percursos prévios mas que se tornaram nomes mundialmente conhecidos pelas vitórias em 2014 e 2006. E há fenómenos inesperados como aqueles que nem concorrem à Eurovisão e de repente têm um dos espectáculos de dança mais vistos do mundo. Foi o caso de Riverdance, criado como um espectáculo de intervalo para a edição do festival de 1994 na Irlanda com tal sucesso que partiu em digressão para mais de 25 milhões de pessoas.

“Nos anos 1990 os cantores na Eurovisão continuavam a fazer carreira sobretudo nos seus países”, separa Carlos Portelo, de 57 anos e tão sábio nestas coisas dos festivais que até a RTP o contacta para tirar dúvidas sobre o evento que ela própria organiza há mais de 50 anos. “A Eurovisão é uma montra enormíssima, o espectáculo musical mais visto de todo o planeta e isso é sempre importante independentemente de se fazer uma carreira — [os músicos] recebem convites para espectáculos em todo o mundo”, exemplifica Portelo, e o país vencedor torna-se o anfitrião do ano seguinte, o que é um outro lado do que representa vencer o concurso.

Para os músicos, o dia seguinte “depende sempre da forma como gerem a carreira e das oportunidades que lhes são dadas nos seus países”, pelas editoras, promotores, agentes e até pelos parceiros nacionais, como a RTP, cuja aposta no regresso e reformulação do Festival da Canção já está ganha com o recorde do ano nas audiências. “Este ano fez uma promoção fantástica, como há muito os fãs desejam”, diz Carlos Portelo.

Apesar de estar em perda em comparação com décadas passadas, em 2016 o evento foi visto por 240 milhões, o dobro de um SuperBowl e muito mais que uns Óscares. Com esse raro papel aglutinador na era da fragmentação de públicos, o que vai à montra depois vende? “É uma questão complexa”, diz Portelo, e “tem acontecido um divórcio entre as editoras e a Eurovisão”, lamenta sobre as outrora poderosas forças de bastidores do evento. Há também a concorrência ou a “complementariedade” dos talent shows, como Ídolos, X Factor ou The Voice, que nas suas versões internacionais lançaram bandas teen como os One Direction, por onde muitos dos concorrentes portugueses e agora dos finalistas da Eurovisão passaram.

Mas talvez não seja essa a função da Eurovisão. Philip Hensher, escritor e jornalista, recorda no Guardian como o festival nasceu, em 1956, como um desafio técnico — uma transmissão simultânea em todos os países — e simbólico de união num continente tão diversificado. Serve um propósito de mostrar, “talvez, um mundo ao contrário por uma noite” em que o Azerbaijão compete com França em pé de igualdade e em que há espectáculo de palco e tantas lantejoulas quanto o kitsch permite, vitórias transgénero, Conchita Wurst ou os gestos sentidos de Salvador Sobral.

 

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