Quem sabe se não foi o Manuel que deu o nome à sua rua?

Quantas vezes, em quantos concelhos, Manuel não passou pela esquina da rua sem nome com a rua sem nome. Das 25 mil biografias que colecciona, o antigo boletineiro fez centenas de sugestões para dar nome às ruas portuguesas órfãs de designação.

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Rui Gaudêncio

Quem o vê andar na rua, descobre-o a olhar para cima, atento ao momento em que uma rua começa e uma placa lhe dá nome. Não seria vaidade se dissesse que conhece o nome de todas as ruas na cidade de Lisboa. Sabê-lo fez parte do seu ganha-pão durante as quatro décadas em que Manuel Lopes trabalhou nos correios. Ossos de um ofício que rapidamente fizeram dele um apaixonado pela toponímia.

Aos 69 anos, Manuel fez centenas de sugestões de nomes para as ruas de Lisboa que até então permaneciam anónimas. Agora está a catalogar as sugestões que enviou para todo o país. Vai na letra I, em Ílhavo, e conta ultrapassar as mil quando estiver pronta a lista com os nomes que sugeriu para ruas portuguesas órfãs de designação.

Há mais de trinta anos que o método é o mesmo. Manuel Lopes identifica as ruas e escolhe, para cada uma, um ou mais nomes, que envia aos municípios. Sempre por carta, com a respectiva biografia, feita por si, em anexo.

"Ainda que normalmente mande um ou mais nomes para as câmaras, há sítios onde forneci os milhares de nomes que tinha e a câmara é que escolheu", conta. Fez isso para a Amadora, Sesimbra e a freguesia de São Domingos de Rana, em Cascais.

A versão longa da vida deste antigo carteiro de Oeiras, natural de Castelo Branco, conta que se começou a interessar por toponímia mesmo antes de saber o que isso era. "Interessava-me saber porque é que aquele nome está ali, quem foi aquela pessoa". 

Começou a trabalhar nos CTT - Correios de Portugal, em Algés, em 1964. Era boletineiro (distribuidor de telegramas), na zona do Restelo. "No Restelo, era uma zona nobre - naquela altura era do mais fino que havia - e as pessoas não se preocupavam com os nomes das ruas”. Tinha a agravante dos nomes das ruas da encosta serem já dos finais da década de 50. Havia muitos que o poder local e os moradores queriam mudar. “Mas como a mudança dos nomes das ruas é muito demorada, ninguém se preocupava com isso. Era telegrama para o Dr. não sei quantos no Restelo, ponto. E nós é que tínhamos que perceber onde era”. Foi por senti-lo na pele (e nos pés) naquele início de carreira que se apercebeu das dificuldades que advinham da falta de toponímia – ou a não actualização do nome das ruas – para quem fazia vida da distribuição.  

Comprou um caderno, daqueles de “ter e haver, chamados livros de merceeiro” – que ainda guarda - e começou a anotar o nome oficial e a designação ainda usada pelos moradores. Foi o início do seu interesse por toponímia. Depois veio a tropa. “Enfim, as coisas ficaram por aí”. Ponto e vírgula.

Chegou a segunda metade da década de 70. Depois do 25 de Abril, as sugestões de nomes de ruas e os pedidos de mudança de outras caiam "em catadupa", tal era a vontade de renovar as cidades, o país. Manuel Lopes era já divisor da distribuição de telegramas, quando o colega que tratava da actualização nos correios "já não tinha idade nem cabeça para aquilo". O chefe chamou-o para o substituir. Nessa altura já apontava aos distribuidores de Lisboa onde eram as ruas. Sabia de cor.

O trabalho de correcção era, então, “um disparate”. "A Comissão [Municipal de Toponímia] aprovava nomes a torto e a direito, alguns até já existiam", lembra-se. A sua fonte era o Diário de Notícias, onde a comissão publicava os editais. Foi então que começaram as cartas, as primeiras das centenas que Manuel havia de enviar à autarquia de Lisboa. Corrigia, entre outras, que a Rua dos Industriais não podia ser Rua Bento de Jesus Caraça, que já existia.

O trabalho nos correios colocou-o numa relação muito próxima com os nomes das ruas, mas a paixão podia ter-lhe passado despercebida: "Há essa relação quando a pessoa se interessa, porque havia muita gente que fazia o que eu fazia e ninguém se interessava por aquilo."

Na década de 80, "quando as coisas ficaram mais calmas", fez a primeira sugestão à Câmara de Lisboa. Chegou ao executivo uma proposta para nomear de Vasco Lima Couto, João Lourenço Rebelo, António Aleixo, Joaquim Cordeiro e Maria Júdice da Costa as ruas do Bairro Alto dos Sete Céus, na Ameixoeira. Foi aprovada.

Esquina da rua sem nome com a rua sem nome

Manuel Lopes não acompanha o processo, não sabe que propostas viram a luz do dia. É a participação cívica que lhe interessa. "Eu faço o meu trabalho como cidadão e depois cada um responde por si". Há autarquias das quais recebe resposta. Chegou mesmo a ser convidado para a inauguração das ruas Joaquim Fiadeiro (professor), em Reguengos de Monsaraz, e da Alberto José Pessoa (arquitecto), em Coimbra, com nomes sugeridos por si.

Da maioria das autarquias, não chega a ouvir nada. Doutras recebe cartas com vários anos de atraso. É a “insensibilidade” para a parte funcional da toponímia que, para Manuel é a mais importante, mas “as comissões ignoraram”. Explica: como o processo de atribuição de nomes às ruas é, regra geral, muito lento, cria-se uma morada provisória. Quando a câmara lhe atribui um nome, a morada tem que ser actualizada uns anos depois em todos os serviços. E nem todos os moradores fazem esta actualização, criando “o caos” nos correios, nas empresas de distribuição, nos bombeiros, na polícia. “Não podem ir socorrer ninguém à esquina da rua sem nome com a rua sem nome, não é?”.

Dá o exemplo da Quinta do Lambert, no Lumiar, dividida em lotes aquando da sua construção. Cada rua teve depois um nome. Passado algum tempo, foram atribuídos números. Uma sucessão de actualizações que fez com que Manuel chegasse a ter nas mãos “correspondência para a Quinta do Lambert lote 9, Quinta do Lambert número 3, Rua Agostinho Neto lote 9 e Rua Agostinho Neto número 3. Agora multiplique isto pela cidade toda”, pede para imaginar.

Calcorrear as ruas atrás do código postal

Com o fim dos telegramas e a saída das telecomunicações para uma empresa autónoma, em 1992, Manuel deixa os CTT.

Havia de voltar poucos anos depois para preparar a passagem do código postal de quatro para sete dígitos. “Na altura, era apenas um projecto”. Quando chegou, já o serviço funcionava com uma base de dados de ruas criada por si – a tal que começara no livro de merceeiro.

Para catalogar as ruas e atribuir o código postal, teve que calcorrear "as ruas todas, dos concelhos todos". Lisboa até mais do que uma vez. Foram três anos devotos ao serviço, até ser publicada a primeira lista.

O “carteiro” perde-se em histórias como se perdia em linhas, ruas e mapas que ele, “sem jeito nenhum de engenheiro", desenhava. Deparou-se com centenas de ruas sem nome. Como estava numa posição privilegiada, “numa espécie de primeira linha de batalha”, intensificou o número de propostas, sem discriminar concelhos. “Era quase um exagero”, admite. 

Não lhe interessa o “lado bonito de as ruas terem um nome”. Queria acima de tudo, sensibilizar para a necessidade de cada lugar ter a sua designação. "E devo dizer-lhe que nem no correio eu consegui sensibilizar". O concelho de Almada foi a sua única vitória, nessa altura: começou a atribuir os nomes e os números de porta no mesmo momento que as novas ruas eram construídas. "Porque tinha no regulamento uma alínea que dizia que a placa era posta à custa do empreiteiro, se a câmara lhe fornecesse os dados dentro de um determinado prazo. Ninguém queria ficar com o encargo, então a atribuição era a mais rápida que já vi". 

“As mulheres foram tão heroínas como os homens heróis”

Manuel Lopes fez o quinto ano de escolaridade em adulto. Já era pai. “Eu não sou um investigador. Eu não tenho habilitações. Só que nunca deixei de ler”. Esta é uma espécie de justificação feliz para ser um coleccionador acérrimo das vidas daqueles que considera ilustres. Tem mais de 25 mil biografias escritas por si, resultado de duas décadas de pesquisa em bibliotecas, de duas décadas de compra de livros. "Leio muitas biografias repetidas, mas há sempre uma que eu não tenho". É um hábito que mantém.

É um homem de esquerda, mas isso não o impede de fazer sugestões de personalidades conotadas com a direita política. Mantém o seu distanciamento, garante. É um ateu que sugere nomes de padres. Um republicano que manteria Salazar na toponímia depois da queda do regime. “Mesmo que seja o nome de Salazar deve ficar lá, porque ele existiu”. É contra a mudança do nome das ruas, que considera uma “tentativa de apagar a história”.

Faz questão de incluir nomes de mulheres e dar o nome de Maria de Lourdes Pintassilgo a uma rua da capital foi uma das suas obstinações. “Há uma desproporção muito grande entre géneros e faço por corrigi-la. No meu tempo, as mulheres foram tão heroínas como os homens heróis”. Não partilha a ideia de que “por trás de um grande homem está sempre uma grande mulher”. "É ao lado", corrige.

As propostas que fez têm uma base lógica. Referências à geografia ou à história, homenagens a quem ali nasceu, morou ou morreu. Manuel chegou mesmo a compilar as “Normas sobre Toponímia e Numeração Policial”, em Maio de 2002, com a intenção de uniformizar o processo. Distribuiu o documento e é por ele que muitos municípios se regem.

Agora que os dias na frente de batalha acabaram, reformado há quase dez anos, Manuel tem menos acesso à informação e faz menos propostas. Dedica-se, por outro lado, ao blogue que actualiza diariamente. É lá que conta as histórias que começou por guardar em disquetes, que agora tem no documento mais longo do computador que o filho lhe arranjara.

- Ainda há muitas ruas sem nome?

- Ainda. Eu não conheço muitas, mas ainda há. Ainda há muita estrada para andar.

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