O Inferno como janela aberta sobre o presente

Na sua primeira investida no épico de Dante, O Bando leva até ao Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa, A Divina Comédia — Inferno. Um espectáculo em que tudo parte da multidão.

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A Divina Comédia — Inferno Filipe Ferreira
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Até 4 de Junho, o Inferno desce ao Rossio, em Lisboa, e instala-se diariamente no Teatro Nacional D. Maria II. Com folgas à segunda e à terça-feira, porque até Dante, fúrias e divindades precisam do seu descanso. A tarefa desmesurada de passar para palco A Divina Comédia, poema fundamental na história da literatura escrito pelo italiano Dante Alighieri no século XIV, começou a esboçar-se há um par de anos a partir do acordo entre o grupo O Bando e o director do Nacional Tiago Rodrigues. João Brites, fundador d’O Bando e encenador de A Divina Comédia — Inferno, conta ao PÚBLICO que se seguiram meses em que a companhia ia desenhando mentalmente a peça passível de erguer, a partir de “um texto com esta dimensão, um referente da construção da Europa”.

O desenho mental começou a ter um arremedo de vida física quando arrancaram, no início de 2017, os ensaios em Palmela, onde O Bando está instalado, juntando 18 actores ainda sem papéis atribuídos. “Fomos tentando perceber que tipo de vocabulário teatral iríamos usar”, diz o encenador, “vendo até que ponto conseguiríamos construir algo que tivesse uma coerência interna e que fosse uma obra colectivista. No princípio até parece que estamos a perder tempo, quando tudo é possível, mas acho que sob o ponto de vista social e político também é muito interessante essa predisposição de perdermos algum tempo. Ainda que tenhamos sentido que estávamos só a partir pedra e parecesse que nunca sairíamos daquele sítio, hoje reconheço que aquilo que está aqui é também feito das ideias dos outros de que, enquanto responsável primeiro do espectáculo, me fui apropriando.”

A entrada no Inferno faz-se através de uma espiral em que público e actores se confundirão. O público, na verdade, será chamado à cena, mesmo que não precise de abandonar a plateia, através de imagens em tempo real a serem trabalhadas por Stephan Jürgens. “O João [Brites] lançou um desafio a mim e ao fotógrafo Alexandre Nobre para pensarmos numa atitude cinematográfica independente, que tinha de corresponder em todos os actos à estrutura da peça, mas que não tinha obrigação de estar assim tão perto do texto”, descreve Jürgens. “Vai ser um pouco como o Merce Cunningham com o John Cage, em que só perto do espectáculo as imagens se vão encontrar com o resto.”

Ao encenador interessava também um registo vídeo que trabalhasse uma sequência em que, acercando-se dos actores, pudesse avançar pelo seu corpo, “entrando mais em pormenor, partindo da imagem da glote, entrando pela traqueia, pelos pulmões, pelas células, pelos núcleos e depois pelas estrelas”. “Para que o milagre que é o corpo humano e a sua estrutura a um nível mais microscópico”, acrescenta Jürgens, “apresente semelhanças com as galáxias.” Do particular para o universal, portanto; do indivíduo para o imenso colectivo. Porque, tal como defende João Brites como “uma das grandes linhas de trabalho” adoptadas, aqui “o Dante, as fúrias, as divindades e tudo o que acontece vêm sempre da multidão — não há ninguém que venha do céu”.

Banhos de lua

Este Inferno, diz João Brites, funciona como “uma janela aberta sobre o presente”. “Servimo-nos da história do Dante porque por vezes parece que a melhor maneira de dizer certas coisas é contar histórias e perceber que essas histórias nos contaminam.” A contaminação, num primeiro momento, incide sobre o Inferno — mas daqui por dois anos deverá apresentar-se com vista para o Purgatório e em 2021 como pequeno vislumbre sobre o Paraíso. Sempre propondo ligações entre o palco e a vida fora dele, ou não acreditasse João Brites que “o teatro é a arte por excelência da vivência concreta no momento concreto”. “Isto faz parte da vida pessoal, inscreve-se na pele de cada um”, defende, “como se tivesse ido à praia num dia em que apanhou sol. Por isso é que, passados tantos anos, algumas coisas ficam connosco.”

E é provável que fiquem também estas personagens, com máscaras de bodes nas suas naturezas autoritárias e de perus nas suas facetas de vitimização, que apanham a boleia de Dante para reflectir sobre a arte enquanto estratégia para a convivência social e acabam a puxar para a cena as três religiões monoteístas, debitando palavras sobre a partitura musical de Jorge Salgueiro. Tudo isto enquanto o calor do Inferno não as obriga a deixar as roupas e a ficar em trajes menores para tomar banhos de lua.

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