Susana de Sousa Dias mostra a memória à flor da pele

A realizadora de 48, cineasta “não alinhada” para quem filmar é documentar o humano, prossegue o seu olhar sobre o Portugal de Salazar com Luz Obscura, a concurso no Indielisboa.

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Susana de Sousa Dias LM miguel Manso

“Costumam perguntar-me onde é que me situo no panorama do cinema e do documentário, mas a verdade é que não me sei situar,” diz Susana de Sousa Dias, sentada no sofá de sua casa em Lisboa. “Não faço parte disto ou daquilo, não sei se por ter estado sempre um bocado… 'ao lado', por trabalhar muito sozinha, a partir de arquivos.” Houve, no entanto, um momento em que a realizadora de 48 (2009), já um clássico do documentarismo feito em Portugal, percebeu onde é que se enquadrava. “Foi em Orléans, onde mostraram a minha primeira longa, Natureza Morta, juntamente com o Jaime do António Reis, que foi meu professor na Escola de Cinema. Pela primeira vez, senti-me pertença de alguma coisa, parte de qualquer coisa... Foi uma experiência muito importante, perceber que, afinal, sempre tenho uma filiação.”

É, ainda assim, uma filiação na escola “não alinhada” dos cineastas (portugueses, mas não só) que procuram caminhos longe das convenções. Poucos dias antes de estrear a sua nova longa, Luz Obscura, no concurso do Indielisboa (São Jorge, quarta-feira, 10 de Maio, às 21h45 e sexta-feira, 12, às 21h30, e Culturgest, quinta-feira, 11 de Maio, às 11h00), Susana de Sousa Dias (n. 1962) confessa que tem sempre um problema de base na sua abordagem. “O meu método de captar os testemunhos é a entrevista mais banal que se possa imaginar: as 'cabeças falantes' frente à câmara. E depois? Que é que eu faço com elas?”, ri-se. “Porque têm uma força estética, mas no mau sentido...”

A sua resposta tem sido sempre deixar essas “cabeças falantes” o mais possível de fora dos seus filmes sobre a “fractura” que a perseguição política do regime de Salazar criou na sociedade portuguesa. Natureza Morta – Rostos de Uma Ditadura (2005) era inteiramente construído a partir de materiais de arquivo; 48 recorria apenas a fotografias de prisão da PIDE acompanhadas pelas vozes dos prisioneiros políticos nelas identificados. Agora, Luz Obscura acompanha as memórias de Isabel, Álvaro e Rui Pato, filhos do dirigente do PCP Octávio Pato (1925-1999). Fala das suas infâncias passadas na prisão — Isabel e Rui estiveram algum tempo em Caxias com a mãe, Albina Fernandes, antes de serem entregues aos avós — ou na clandestinidade. Comparado com os anteriores, é um filme mais “expansivo” na sua austeridade, onde às imagens de arquivos se vêm juntar abstractos visuais e pontuais imagens contemporâneas dos seus três narradores.

“A grande questão, aqui, foi a imagem,” resume Susana. “O que é que eu mostro? Há necessidade de mostrar alguma coisa? Por que é que eu vou pôr uma imagem? Foi aí que o filme se começou a pensar. Havia a questão ética, se era justo ou não mostrar as pessoas. Tirá-las nunca foi uma opção, porque elas próprias carregam a sua história no corpo. O Marcel Ophuls falava do 'documento humano' para falar da carga do que eles viveram, do modo como isso aparece no rosto e no corpo e é filmado, e achei essa expressão muito interessante. Interessava-me isso, porque a minha ideia era fazer um filme sobre os filhos, como eles viam as lutas dos pais, as suas vivências...”

Foi, no entanto, um processo extremamente longo. Para chegar aos (intensíssimos) 75 minutos de Luz Obscura, foram precisos 15 anos de decantação, numa “história complicada” que Susana recorda com alguns sorrisos e até alguma incredulidade. “Quando entrei, em 2000, pela primeira vez no arquivo da PIDE,” explica, “uma das primeiras imagens que vi foi a imagem do menino com a mãe que surge no Luz Obscura. Nessa altura, comecei a pensar em dois filmes. Um foi o Natureza Morta, o filme natural que saiu do choque que tive ao investigar naqueles arquivos. O outro foi este, porque o choque de descobrir aquela fotografia levou-me a tentar descobrir quem era o menino. Começo a avançar com os dois filmes em paralelo, o canal Arte entrou na produção do Natureza Morta e pus este de lado.”

A ideia era retomar Luz Obscura uma vez terminado Natureza Morta — e os testemunhos de Isabel, Rui e Álvaro Pato foram de facto filmados em 2006-2007. “Mas, ao mesmo tempo, os arquivos começaram-me a puxar para outro lado completamente diferente. Tinha outro filme na minha cabeça, que era o 48, consegui apoio, e passei para o 48...” Luz Obscura voltou à prateleira enquanto 48 fazia um percurso internacional extraordinário (com o prémio máximo no festival francês Cinéma du Réel), e só então Susana de Sousa Dias se entregou finalmente ao filme que carregava desde 2000 — e que, diz agora, “não conseguiria sequer ter feito sem ter feito os outros.” A realizadora sorri. “É uma história muito difícil de desbastar, porque não se tratava de mostrar como é que esta família era, mas sim de pensar como é que a PIDE agia sobre esta família. Por isso retirei tudo o que eram fotografias familiares para só utilizar fotografias tiradas pela PIDE. É uma confrontação da memória oficial — porque a PIDE fotografava tudo — com a memória íntima.”

É nessa “confrontação” entre os documentos de arquivo e as memórias “à flor da pele” dos seus entrevistados — “eles falam das experiências e de repente é a voz da criança que foram que vem ao de cima” — que reside a “chave” de Luz Obscura, e do “não-alinhamento” do documentário tal como Susana de Sousa Dias o faz. “Se vamos aos arquivos, encontramos uma imagem do tio Abel, por exemplo, mas quem é o tio Abel? E ainda há um ir mais para trás, à avó [que criou os irmãos enquanto os pais estavam presos ou na clandestinidade]. São pessoas que não existem na história. Para mim, isso é muito importante: como é que se chega lá? É uma espécie de arqueologia da memória: temos de escavar para ir à procura de um traço destas pessoas que foram importantes.”

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