De deserto a floresta, a evolução da ciência em Portugal em 30 anos

José Mariano Gago organizou umas jornadas em 1987 em que reuniu a pequena comunidade científica em Lisboa. Esta semana essas jornadas serão revisitadas.

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As jornadas em 1987 DR

De “deserto” para “floresta”, em 30 anos a evolução da ciência deu a Portugal mais laboratórios e investigadores, mas o aumento da produção científica conseguido trouxe um reverso, a precariedade do trabalho dos cientistas.

O retrato foi feito à Lusa por investigadores a propósito da conferência O futuro da ciência em Portugal, 30 anos após as jornadas de Maio de 1987, que se realiza na quinta-feira, 11 de Maio, no Fórum Picoas, em Lisboa.

Há 30 anos, no mesmo local e na mesma altura, entre 11 e 15 de Maio, decorreram as Jornadas Nacionais de Investigação Científica e Tecnológica, organizadas por José Mariano Gago e que conduziram à formulação do Programa Mobilizador de Ciência e Tecnologia, destinado a apoiar projectos de investigação.

Carlos Salema, que sucedeu em 1989 ao ex-ministro da Ciência Mariano Gago na liderança da então Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica (JNICT, que daria origem à actual Fundação para a Ciência e a Tecnologia), esteve a gerir o Programa Ciência, que promoveu a formação de doutorados e a construção de infra-estruturas entre 1990 e 1993.

Passando em revista estes 30 anos, o actual presidente do Instituto de Telecomunicações recorre a uma metáfora para descrever o que mudou na ciência em Portugal: “Mudou muita coisa, é quase como comparar o deserto do Sara à floresta amazónica.”

Carlos Salema, que será um dos oradores da conferência, enumera a criação de laboratórios e a formação de investigadores como pilares do avanço. “Foi preciso fazer um investimento inicial, porque realmente estávamos abaixo da pobreza total”, sustentou.

O instituto que fundou, e que beneficiou de verbas do Programa Ciência, tem hoje 320 doutorados, multiplicando por dez o número de pessoas qualificadas de há cerca de 30 anos. Fruto do aumento da actividade científica, expresso na produção de artigos publicados em revistas especializadas, foram criadas inovações em Portugal como comprar um bilhete de comboio ou de teatro numa caixa multibanco, exemplificou.

De acordo com estatísticas oficiais, divulgadas na Pordata – Base de Dados Portugal Contemporâneo, o número de doutorados passou de 274, obtidos em 1987, para 2668, obtidos em 2013 (ano mais recente disponível).

Em 1987, os artigos publicados por investigadores portugueses em revistas científicas internacionais totalizavam 740, enquanto em 2015 ascendiam a 21.333.

Os cientistas envolvidos em actividades de investigação e desenvolvimento a tempo integral em 1986 eram 5722, grande parte dividindo-se pelo ensino superior e Estado, e em 2015 já chegavam aos 39.579, a maioria concentrada em universidades.

Carlos Salema queixa-se do excesso de burocracia, que não mudou, das “exigências disparatadas” na administração pública que empecilham, por vezes, a compra de equipamentos e lança como repto para o futuro o pagamento de salários mais altos para evitar a “fuga de cérebros”, dos melhores, para o estrangeiro. “Pagar o que é razoável, e para isso tem de haver mais desenvolvimento económico”, sentenciou.

Para Elvira Fortunato, “mãe” do transístor de papel, Portugal já joga na “champions league”. Tem “doutorados de elevada qualidade”, o que permitiu “formar equipas, grupos e laboratórios com qualidade reconhecida internacionalmente”. “Em algumas áreas, estamos praticamente de igual para igual” com outros países, disse a directora do Cenimat – Centro de Investigação dos Materiais e conselheira científica do comissário europeu Carlos Moedas.

“Muito instável, muito precário”

Manuel Sobrinho Simões, considerado em 2015 o patologista mais influente do mundo, lembra que não há lugares para todos fazerem ciência e que “é um mundo muito competitivo”. O trabalho, sobretudo para as gerações mais novas, “é muito instável, muito precário” e mal pago, sublinhou. Por isso, defende “escapes profissionais recompensadores e socialmente úteis” para os doutorados nas universidades, nas empresas e na administração pública.

O director do Instituto de Patologia e Imunologia Molecular da Universidade do Porto (Ipatimup) lamenta, porém, “a resistência” de investigadores, empresas e instituições a dar esse salto. “É um problema de atitude e cultura”, invocou Manuel Sobrinho Simões.  

A “imensa precariedade” laboral é apontada por João Pedro Ferreira, vice-presidente da Associação de Bolseiros de Investigação Científica, como uma má consequência da explosão da actividade científica em três décadas. “Estar num sítio e conseguir perspectivar a vida a vários anos, não sei o que isto é. Para mim, perspectivar a vida a vários anos é ter uma bolsa de doutoramento de quatro anos e uma bolsa de pós-doutoramento de três anos”, disse João Pedro Ferreira, ele próprio bolseiro de pós-doutoramento.

Para dar resposta ao trabalho científico, muito do que é feito é à custa de investigadores que perpetuam bolsas de formação, sem direitos laborais como o acesso à segurança social, referiu João Pedro Ferreira. Como desafios para o futuro da ciência em Portugal, este investigador elege, além do fim da precariedade, o direccionar o que se faz de melhor na investigação portuguesa para a resolução de problemas concretos do país.

“Não defendo uma ciência isolada do mundo, mas como pomos a nossa ciência ao serviço dos interesses da economia portuguesa e das suas especificidades?”, questionou João Pedro Ferreira, advogando que os centros de investigação deveriam “trabalhar numa maior proximidade” com as regiões onde estão inseridos e “desenvolver produtos para a sua economia”.  

Na conferência “O futuro da ciência em Portugal, 30 anos após as jornadas de maio de 1987”, que reúne intervenções de cientistas, professores, estudantes e empresários, são esperadas as presenças do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, do primeiro-ministro, António Costa, e do ministro da Ciência, Manuel Heitor. 

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