Um “salto quântico” na participação das pessoas sem-abrigo

Presidente da República regressa ao Porto, desta vez a convite de uma associação formada por pessoas com experiência de rua.

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Marcelo assumiu o compromisso de um país sem pessoas a viver nas ruas: as associações elogiam Miguel Manso (arquivo)

Até houve atrapalhação entre os membros da associação formada por pessoas com experiência de rua Uma Vida como a Arte. O Presidente da República aceitou de imediato o convite para regressar ao Porto. Esta segunda-feira estará com eles e com outros sem-abrigo na cidade.

“Nunca pensámos que fosse já”, admitiu La Salete Miranda, presidente da assembleia-geral. O Presidente não pára. “Quer pressionar o Governo [a lançar a nova Estratégia Nacional para a Integração de Pessoas Sem-Abrigo]. Diz que se ficamos à espera só começa em 2018.”

“Pela primeira vez, temos a mais alta figura do Estado a mostrar que reconhece um movimento destes e que quer estar próximo”, comenta José Queiroz, coordenador nacional da Agência Piaget para o Desenvolvimento (APDES). “Quer perceber que estratégias propõe para modificar as suas condições de vida. Faz deste um movimento par, que tem direito a participar na definição de estratégias nacionais. Do ponto de vista simbólico, isto significa uma fractura, um avanço civilizacional.”

Sabe que não são de geração espontânea os movimentos como aquele, que desde 2013 tem sido impulsionado pela plataforma Vozes do Silêncio, do Núcleo de Planeamento e Intervenção Sem-Abrigo (NPISA). A APDES ajudou a criar a CASO – Consumidores Associados Sobrevivem Organizados, que agrega utilizadores e ex-utilizadores de drogas, alguns ligados a Uma Vida como a Arte.

Um grande desígnio

Há meses que Marcelo Rebelo de Sousa chama a atenção para o vazio que se instalou desde que a velha estratégia (2009-2016) findou e faz a defesa de uma nova (2017-2023). A 17 de Fevereiro, esteve a servir refeições no Restaurante Solidário, no Porto, e o presidente d’ Uma Vida como a Arte, António Ribeiro, foi lá entregar-lhe uma carta na qual o desafiava para uma reunião destinada a trocar impressões.

Marcelo não se esqueceu daquilo. E no dia 4 de Abril, La Salete Miranda e António Ribeiro estavam em Lisboa. Durante duas horas, o Presidente falou com ambos e com dirigentes da Comunidade Vida e Paz, do Centro de Apoio aos Sem-Abrigo, da Associação para o Estudo e Integração Psicossocial, do Grupo de Acção Social do Porto e da Pastoral Penitenciária da Igreja Católica.

António Ribeiro tinha um discurso preparado, não fosse o nervosismo traí-lo. “Temos proposto caminhos — mais acompanhamento social, mais apoio económico para edificar os nossos programas de inserção, mais equipas de rua, mais casas, pois depois de passarmos pelos centros de alojamento temporário, que até são necessários para uma fase inicial, precisamos de habitação a baixo custo”, discursou. “Precisamos de mais emprego e, por isso, de estímulo às empresas de forma a quando já estamos em condições podermos aceder ao trabalho.”

Marcelo Rebelo de Sousa ouviu aqueles e os outros dirigentes. No fim, anunciou uma vontade comum: "Deixar de haver sem-abrigo em Portugal em 2023." "O papel do Presidente da República é ir acompanhando e apoiando aquilo que todos queremos que seja uma grande estratégia, um grande desígnio, uma grande finalidade nacional."

Não tardou a voltar a chamar António Ribeiro e La Salete Miranda. Reuniram-se com o Presidente, os mesmos dirigentes associativos e alguns representantes do Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, das câmaras de Lisboa e Porto e da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa no dia 17 de Abril. No dia seguinte, estavam no Parlamento, numa audição convocada pela Comissão de Segurança Social para discutir o que foi a velha estratégia e o que será a nova, na qual participou a secretária de Estado da Segurança Social, Cláudia Joaquim.

“Começamos a ter voz”

“Há aqui uma espécie de salto quântico”, entusiasma-se José Queiroz. “Passámos de uma estratégia discutida nos gabinetes por agentes do Estado para uma estratégia discutida pela sociedade civil, incluindo a própria população em situação de sem-abrigo, que se organizou, que quer ter uma voz e que está a tê-la.”

Qual poderá ser o papel dos movimentos formados por grupos sociais mais vulneráveis, como este? Até que ponto conseguirão influenciar políticas públicas? “É um processo difícil e moroso, mas essencial. Estamos a falar de grupos invisibilizados, que estão na periferia dos direitos, que são discriminados, o que contraria a ideia de cidadania como construção universal”, enfatiza Isabel Menezes, da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto. "Enquanto os próprios não reclamarem direitos, mudanças, ficarão dependentes da consciência de outros."

Não há em Portugal uma tradição de movimentos desta natureza, sublinha José Mendes, coordenador do Observatório do Risco, do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. “O Estado faz tudo para ter mediadores, para não ser interpelado directamente.” As classes médias têm assumido muito esse papel de mediação, através de associações e de instituições particulares de solidariedade social (muitas das quais ligadas à Igreja Católica).

Não faltam obstáculos, nota João Carlos Silva, investigador do Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais, pólo da Universidade do Minho. Desde logo, há a penúria, que conduz “a atitudes individualistas que dificultam mais ainda a solução colectiva dos problemas, a que acrescem ora os preconceitos, ora as atitudes de indiferença de muitos cidadãos mal informados”. Depois, há as instituições, que tendem a impor “regras ou controlos absolutamente inacessíveis”.

“Estes grupos só se libertarão como cidadãos com direitos quando eles próprios, ainda que auxiliados em ternos organizativos e reivindicativos por outros, não ficarem dependentes dos seus patronos ou beneméritos, mas tiverem uma estratégia de combate à estigmatização da sua situação, de defesa dos seus interesses e propostas reivindicativas dos seus direitos como cidadãos, a começar pelo alojamento, pelos apoios sociais, pelo acesso à saúde e ao emprego”, sublinha. Quem os apoia tem de perceber a hora certa de deixar ir. "A autonomia é devolvida sobre a forma de questionamento", diz Queiroz.  "Para ganhar a sua identidade tem de se voltar para ti não para te pedir ajuda mas para te questionar, te criticar".  

Uma Vida Como a Arte ainda se apoia muito na Segurança Social, na Santa Casa da Misericórdia do Porto, na cooperativa Welcome Home, mas tem a sua agenda. “Começamos a ter voz”, acredita António Ribeiro. Querem usar essa voz para dizer que, por falta de dinheiro e de articulação, o que existe no Porto está a ruir. “Tem de haver respostas diferentes”, diz La Salete Miranda. “Há uns que querem ficar na rua, outros que querem sair. Há uns que estão doentes, outros que podem trabalhar. Agora, tem de haver técnicos. Tem de haver um acompanhamento sério — um técnico não pode andar com 205 casos, como acontece. E tem de haver habitação [definitiva] para as pessoas não andarem entre a rua e os albergues.”

No ano passado, últimos dados disponíveis, cerca de 900 pessoas foram acompanhadas por quatro técnicos da Segurança Social e 31 de instituições parceiras. Estimava-se que outras 200 continuassem nas ruas.

Esta segunda-feira, o Presidente não se sentará com representantes de instituições e serviços que fazem parte do NPISA para ajudar a que “se entendam e melhor se organizem”, como desejava Uma Vida como a Arte. Passará pela Casa da Rua, a comunidade de inserção da Santa Casa da Misericórdia do Porto que durantes estes anos acolheu as reuniões da associação, estará com quem lá vive e/ou come, ouvirá o Som da Rua, um projecto de inclusão do Serviço Educativo da Casa da Música, e fará uma ronda pela cidade com a equipa de rua dos Médicos do Mundo e com a equipa de rua da SAOM - Serviços de Assistência Organizações de Maria.

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