A ascensão do atleta virtual

Jogar videojogos pode ser a base para uma carreira em Portugal, ainda que com ganhos baixos. O evento 4Gamers no Meo Arena juntou os fãs portugueses da modalidade que nem os clubes de futebol ignoram. O Sporting, Paris Saint-Germain e Valencia já aderiram. Aptidões exigidas? 400 decisões por minuto.

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Os fãs de eSports encheram a Sala Tejo no Meo Arena, para ver os melhores do desporto electrónico em Portugal NUNO FERREIRA SANTOS
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Christopher Fernandes, ou MUTiRiS, foca-se a tempo inteiro nos eSports NUNO FERREIRA SANTOS
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Em alguns países, os salários anuais dos jogadores de eSports ultrapassam centenas de milhares de euros NUNO FERREIRA SANTOS

Oficialmente não tem um emprego, mas Christopher Fernandes, 24 anos, não se preocupa: preenche os dias a treinar para competições nacionais e internacionais do videojogo Counter Strike: Global Ofensive e ganha dinheiro com isso. Os fãs conhecem-no como MUTiRiS. “Decidi deixar a escola no 11.º ano, porque não gostava do curso de turismo e percebi que me podia dedicar, profissionalmente, aos videojogos. Expliquei aos meus pais que acreditava ter potencial para crescer na modalidade”, diz Christopher. “São precisas horas de treino para evoluir. Envolve muita dedicação, pensamento estratégico e precisão nas jogadas.”

Em Portugal jogar videojogos ainda é visto como um passatempo pela maioria, mas pode ser a base para uma carreira como atleta profissional. Em alguns países, dá acesso a salários anuais que ultrapassam centenas de milhares de euros. Basta ser-se o melhor. Bem-vindo ao universo competitivo dos desportos electrónicos, mais conhecidos como eSports, que envolve no mundo mais de 320 milhões de pessoas e com receitas avaliadas em 450 milhões de euros, em 2016.

Este sábado, os fãs portugueses encheram a Sala Tejo do Meo Arena, em Lisboa, para verem de perto os candidatos ao sucesso na modalidade sem sair do país no evento 4Gamers. Christopher foi um dos atletas a participar no torneio de Counter Strike em exibição no salão de jogos temporário.

Veste a camisola de um dos melhores clubes de eSports em Portugal, os K1ck. Ao viajar com eles — dentro e fora do país —, tem conquistado centenas de euros em prémios, mas admite que não é ainda suficiente para viver da actividade. Actualmente, foca-se a tempo inteiro nos eSports, mas já tem conciliado com outros empregos em part-time.

“Em Portugal, ainda não há ninguém a apostar verdadeiramente nos jogadores para os ajudar a chegar ao topo e a manterem-se lá”, explica Christopher, “Há pouca divulgação da modalidade e faltam muitos apoios. Para quem quer estudar é muito difícil conciliar as actividades sem afectar um dos lados.”

A sua equipa de Counter Strike tem encontro diário marcado das 14h às 19h para acertarem tácticas de jogo. Depois, à noite, treinam mais algumas horas sozinhos. Noutros países, aliar o ensino aos eSports não é um conceito invulgar. Desde 2014, várias universidades norte-americanas — como a Robert Morris, em Chicago, e a Universidade do Utah — oferecem bolsas de atletismo para apoiar quem compete em torneios de eSports. Algumas chegam a cobrir até 70% das propinas, com valores que ultrapassam os 450 mil euros. Na Coreia do Sul, a Universidade de Chung-Ang, uma das dez melhores do país, aceita estudantes com base no seu talento em eSports. Estes países estão entre os que mais vendem bilhetes para campeonatos de desportos electrónicos.

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“A capacidade de pôr os melhores contra os melhores a nível internacional é parte do fascínio dos eSports”, explica Pedro Domingues Fernandes, o actual responsável pelos K1ck. “A parte que mais atrai quem assiste é a emoção e a carga psicológica com que os jogadores têm de lidar nos momentos mais decisivos.”

Mas para o jogador português de League of Legends Alexandre Nascimento, 22 anos, a falta de apoio universitário está longe de ser um dos maiores problemas em Portugal. “Há grandes torneios ao nível das associações de estudantes, mas para ser visto como profissão é preciso começar por promover a actividade”, argumenta.

Se um dia sentir que já não consegue evoluir como jogador, planeia voltar à faculdade, mas até lá quer dedicar-se a tempo inteiro aos eSports para se manter no topo, num país onde ainda há pouca atenção para o fenómeno. “Treino umas dez horas por dia. Três com a minha equipa e o resto individualmente”, diz Alexandre, que é conhecido como Truklax no meio. “Em equipa também revemos os nossos jogos e estudamos os adversários.”

Desde que começou a jogar há seis anos, já passou por várias equipas portuguesas e turcas. Tenta assinar contratos com clubes de outros países para escapar aos períodos sem actividade no país. Embora os salários que ganha além-fronteiras sejam melhores — “rondam os dois mil euros”, enquanto em Portugal tendem a ficar próximos do salário mínimo —, não quer emigrar.

“Prefiro viver em Portugal”, confessa, “mas acabei de passar quatro meses a jogar para os Turquality [uma equipa de Istambul] sem que existisse um único torneio em Portugal. Não perdi nada da competição nacional”.

Considera eventos como o 4Gamers, que se realizou este fim-de-semana, importantes para mostrar aos fãs de eSports portugueses que há jogadores de topo no país: “Muitos nem percebem que existe um cenário competitivo em Portugal.”

O salão de videojogos temporário na Sala Tejo dá oportunidade aos visitantes para verem clubes de eSports nacionais — como os AlienTech, Doxa Gaming, Egn.Pro, Exotic, K1ck e FTW.G2A — competirem entre si e com equipas internacionais em dois palcos dedicados a jogos distintos, enquanto navegam por uma panóplia de outras actividades que vão desde workshops e debates sobre videojogos a sessões de autógrafos.

Os grandes vencedores vão levar cinco mil euros como primeiro prémio. Depois de anos a jogar lá fora, Ricardo Pacheco – Fox para os fãs – acha baixo. “A única evolução em Portugal são estes palcos, as luzes LED, os cenários, porque o prize money [valor dos prémios] mudou pouco”, conta Fox enquanto assina autógrafos para os fãs que o vêem como um exemplo. Soma milhares de euros mensais a jogar.

“É claro que o espectáculo conta. É muito melhor jogar num palco com muita gente a ver, mas o objectivo é ganhar, sair daqui com um bom prémio e chegar a número um.” Aos 30, é o capitão da Team Dignitas, uma equipa internacional com sede no Reino Unido. “Sei que isto é futuro. Já é lá fora, mas Portugal está sempre com o pé mais atrás em investir. Não é fácil fazer disto vida em Portugal."

A situação pode mudar com a aposta de grandes clubes desportivos na área.

A moda do futebol virtual

Em Julho, o Sporting lançou a sua própria equipa de eSports. Desde então, clubes como o Estoril, Farense e Belenenses anunciaram o mesmo. Começa a ser moda na Europa, com o Paris Saint-Germain, em França, o Valência, em Espanha, e o Manchester City, no Reino Unido, a aderirem aos eSports nos últimos quatro anos. Alguns clubes juntam diferentes videojogos, mas a maioria decide focar-se em equipas de futebol virtual da FIFA.

O clube alemão Wolfsburgo foi o primeiro a dar o passo, em 2014. “Ao investir nos eSports, estamos a aprender como atrair pessoas mais jovens, e transferir esse entusiasmo para os jogos tradicionais de futebol”, explicou Christopher Schielke, o responsável pela estratégia digital pioneira do clube, ao PÚBLICO. Em 2016, o Wolfsburgo fez novamente história — com o Sporting, no Estádio de Alvalade — no primeiro torneio de futebol virtual entre duas equipas de futebol profissional.

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Quem não é fã de videojogos pode ver a modalidade como algo pequeno — e apenas popular entre adolescentes —, mas mais de 323 milhões de pessoas vêem ou jogam eSports em todo o mundo e espera-se que o mercado ultrapasse os mil milhões de euros em receitas até 2020. Embora fique ainda muito aquém dos números do futebol europeu — com mais de 22 mil milhões de euros em receitas na temporada de 2014/2015, segundo a Deloitte —, é um mercado em rápida expansão. Só desde 2015, as receitas globais dos eSports cresceram mais de 115%.

Mas a vida de um jogador no comando ainda é muito diferente da vida no relvado. “Em Portugal, pelo menos, ainda são precisos muitos sacrifícios financeiros para se chegar a profissional de eSports. É difícil atingir um estatuto de topo”, diz Francisco Cruz, 22 anos — Quinzas para os fãs —, que em 2011 se sagrou em Los Angeles campeão mundial de FIFA, o popular videojogo de futebol da Electronic Arts, e agora se junta à equipa digital leonina.

Para já, a secção de eSports do Sporting é autónoma, o que quer dizer que os custos não são suportados pelo clube. Embora consiga financiar as viagens de Quinzas para as competições europeias, o salário ainda não chega aos quatro dígitos. Para o jogador, não é um problema: “Já dá para ajudar a pagar a faculdade e acredito que o nome do clube nos pode ajudar a avançar com a modalidade a nível nacional e mundial.”

Entre competições, vai completando o curso de Economia na Universidade do Porto. “Para jogar FIFA, as horas de treino não são o mais importante”, esclarece quando questionado sobre como consegue conciliar os estudos com a carreira. “O principal é conhecer o jogo de futebol tradicional e saber incorporar estratégias do jogo na sua forma electrónica. Por exemplo, saber aproveitar os pontos fracos da defesa da outra equipa.” Como jogador do Sporting, quer “fazer crescer os eSports em Portugal” e acredita que uma federação nacional para regular a actividade já faz falta.

Ambições olímpicas

O mês de Abril acabou com a notícia de que os Jogos Olímpicos Asiáticos de 2022, em Hangzhou, na China, vão incluir a modalidade de eSports. “Estes jogadores devem ser considerados atletas porque a modalidade exige bastante da mente e do músculo”, defende Leopold Chung, o director do departamento de relações internacionais da Federação Internacional de eSports (IeSF), ao PÚBLICO. “É preciso ter excelentes reflexos e um raciocínio muito rápido para se conseguir tomar e executar centenas de decisões estratégicas em tempo real.”

A federação foi criada em 2008, na Coreia do Sul, com a missão de legitimar a actividade como modalidade desportiva. Já inclui 46 federações nacionais de todo o mundo, 11 das quais são reconhecidas pelo Comité Olímpico do país em questão.

A ideia de que um jogador de eSports pode ser completamente sedentário sem se preocupar com a alimentação ou com a saúde é falsa, sustenta Chung: “O desempenho de qualquer profissional melhora se a sua saúde está no máximo. Como tal, muitas equipas de eSports incluem agora dietistas e treinadores pessoais.”

O Comité Olímpico Internacional mantém-se reticente — o presidente, Thomas Bach, disse na semana passada que tem dúvidas sobre a “componente física” dos eSports e os valores que alguns promovem —, mas já há atletas olímpicos a aceitar jogadores de eSports como colegas desportistas.

“Não há dúvida sobre o nível de habilitações técnicas, treino e devoção necessários para se ser um jogador profissional”, disse o vencedor de 23 medalhas de ouro olímpicas e fã de videojogos Michael Phelps, ao apresentar o prémio de melhor jogador de eSports do ano numa cerimónia em Los Angeles, em Dezembro passado.

Para Chung, é a prova de que o mundo está a mudar: “Os eSports são cada vez mais populares, especialmente junto da comunidade mais jovem. São a geração que cresceu imersa num ambiente digital e vai influenciar a procura por este tipo de competições.”

Os países investem cada vez mais cedo nestes atletas. Nos últimos três anos, várias escolas no norte da Europa — como a secundária de Arlanda, na Suécia, e a de Garnes, na Noruega — começaram a oferecer a modalidade como disciplina para estimular as possibilidades de os alunos se tornarem atletas de topo nos eSports. O modelo norueguês inclui cinco horas por semana, com professores que discutem tácticas de jogo com os alunos, palestras de Skype com atletas internacionais de topo e uma componente de exercício físico para treinar a agilidade e os reflexos.

Crise, desemprego e jogos

Há décadas que os videojogos reúnem milhões de fãs em todo o mundo para competir por dinheiro — o site especializado eSports Earnings tem registos desde 1998. O maior impulso foi dado pela Coreia do Sul, após a crise financeira asiática.

Em 1997, o governo decidiu investir fortemente na infra-estrutura das telecomunicações e da Internet como parte das reformas económicas. O número de cibercafés e PC Bangs (salas de computadores dedicados aos videojogos), a cerca de 1000 wons (80 cêntimos) por hora, explodiu. Tornaram-se um refúgio barato e passatempo para os muitos sul-coreanos arrastados para o desemprego e que queriam um local para passar os dias. O interesse foi crescendo, com os torneios a serem transmitidos nas estações de televisão que foram aparecendo com o investimento nas novas estruturas. Tornou-se um passatempo nacional, apoiado pelo governo.

O cenário português avança agora. Além do aumento da visibilidade, com equipas de futebol a entrar no mercado, e a transmissão de um programa semanal sobre eSports na RTP1 (RTP Arena), há uma agência dedicada a profissionalizar a actividade em Portugal desde o mês passado, a Bitzer.

O objectivo é atrair jovens que fiquem a jogar no país: “É uma área em rápida evolução e ainda há muito o amor à camisola. Mesmo tendo uma proposta melhor para jogar lá fora, se existir uma boa opção em Portugal muitos podem ficar”, defende Tiago Fernandes, o director de operações da Bitzer.

Quinzas, que agora veste a camisola verde e branca do Sporting, acredita ser exemplo disso: “Quero fazer crescer os eSports para que a próxima geração tenha melhores condições para ser profissional. O meu caso é quase único, e ainda assim não me podia sustentar unicamente disto. Quero criar mais oportunidade para todos.”

Já para Christopher — que se dedica a tempo inteiro aos videojogos —, é difícil ignorar a dimensão da modalidade lá fora. “É evidente que há sempre o ‘bichinho’ de querer ir para o estrangeiro se em Portugal não funcionar e eu tiver uma boa proposta.”

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