Merci, Marine Le Pen

“Ao exibir uma agressividade quase permanente sabotou a sua própria estratégia de desdiabolização.” Assumiu brutal e agressivamente um rosto de extrema-direita.

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O último debate não terá provavelmente uma influência decisiva nos resultados eleitorais. Noventa por cento do eleitorado já fez as suas opções. Mas ameaça ter um efeito ao retardador na imagem política de Marine Le Pen. Ela não vai sair de cena. No debate tentou assumir-se como nova chefe da oposição. E deu uma ideia de como exercerá esse papel. Mas destruiu em duas horas o que levou anos a trabalhar: a sua estratégia de “desdiabolização”. Assumiu brutal e agressivamente um rosto de extrema-direita.

Quando foi eleita líder da Frente Nacional (FN), sucedendo ao pai, Jean-Marie Le Pen, em Janeiro de 2011, pôs em prática, e com êxito, a dita estratégia de desdiabolização. Visava romper o “cordão sanitário” que isolava a FN e lhe vedava a entrada na esfera do poder. Escreveu-se na altura: “Marine é mais perigosa do que o pai.” Jean-Marie Le Pen adorava a política de protesto. A filha queria o poder. E o poder passava por partir ao meio a direita tradicional, abrindo um novo espaço político onde imporia a sua hegemonia, tornando-se a alternativa à esquerda.

A campanha de Marine Le Pen na primeira volta foi o inverso do debate. O seu lema era “A França apaziguada”. Foi criticada nas suas hostes pela “moderação”. Na recta final mudou de tom e radicalizou o discurso para “fixar” as bases. Na semana passada, fez um acordo com Nicolas Dupont-Aignan, chefe do pequeno partido “Debout La France”. É a primeira a aliança com uma força da direita que, para mais, se reivindica do gaullismo.

O enigma da sua conduta no debate é tanto maior quanto aposta em colher metade do eleitorado de François Fillon. A três dias do voto, vê-se sob o fogo dos notáveis da direita. Neste terreno, a radicalização do discurso “eurófobo” será o pior dos atractivos. E torna muito mais incómodo o “voto branco” de Jean-Luc Mélenchon — “Nem Macron, nem Le Pen”. Marine parece enredada nas suas próprias contradições.

O “golpe de estado”

No debate, não falou como candidata presidencial mas como um tribuno num comício dirigindo-se aos militantes e simpatizantes, aqueles cujos votos estavam garantidos. Porquê? Jean-Marie Le Pen atribui a responsabilidade ao círculo dirigente da FN, que ele odeia. Teriam convencido Marine a atacar por todos os meios para provocar “o afundamento ou a desagregação psicológica” do adversário.

A investigadora Cécile Alduy, que tem trabalhado sobre o discurso dos políticos, não tem explicação: “Fiquei chocada com a incapacidade de Marine Le Pen controlar as suas palavras. (...) Ela sempre se soube conter quando era preciso para salvaguardar a sua imagem.”  Foi “incapaz de se presidencializar” e perdeu credibilidade perante o eleitorado de direita de que necessita. “Ao exibir uma agressividade quase permanente sabotou a sua própria estratégia de desdiabolização.” E deu a Macron a bela oportunidade de vestir o fato de “chefe de Estado”.

A FN tem raízes profundas na sociedade francesa. E, no domingo, captará votos na direita e na extrema-esquerda. Marine colocou muito alto a fasquia para as legislativas de Junho, onde sonha com um grande grupo parlamentar. Para isso precisa de manter a “banalização” da FN, um partido em que se pode votar sem tabus.

Mas o debate reacendeu a inquietação noutro plano. Um conselheiro de Marine, o eurodeputado Gilles Lebreton, explicou ao Canard Enchaîné, como Marine governará se for eleita Presidente. “Se a nova assembleia nos for hostil, mudaremos a lei eleitoral através de um referendo no Verão, depois da Presidente dissolver o Parlamento.”

O jurista Otto Pfersmann publicou um artigo sobre a patente inconstitucionalidade dos desígnios presidenciais de Pen: “O golpe de estado que ela propõe não visa manter mas destruir a República.” A sobrinha, Marion Maréchal-Le Pen, anunciou que, uma vez eleita, Marine usará abundantemente o referendo para se desembaraçar do “governo dos juízes” ou “contornar potenciais bloqueios”.

O debate de Marine deu credibilidade a velhos temores. Ressuscitou a desconfiança perante a “duplicidade democrática” da FN. Será na campanha das legislativas que o efeito poderá ser avaliado. Até lá, os seus adversários podem render-lhe uma sincera homenagem: “Merci, Marine Le Pen.”

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