As aventuras de dois cientistas portugueses num continente longínquo

Ir até à Antárctida tem muito que se lhe diga. Ricardo Almeida viveu lá mais de um ano e José Queirós viajou quase três meses no oceano Antárctico. Ambos vão contar as suas histórias na palestra Dois cientistas, um continente: Antárctida!, em Lisboa, na próxima terça-feira.

No mar de Dumont d’Urville, na Antárctida
Fotogaleria
No mar de Dumont d’Urville, na Antárctida Pauline Askin/Reuters
Fotogaleria
A base Halley VI DR
Fotogaleria
Ricardo Almeida e um colega DR
Fotogaleria
Uma colónia de pinguins DR
Fotogaleria
Numa colónia de pinguins DR
Fotogaleria
José Queirós com o polvo gigante DR
Fotogaleria
José Xavier (à esquerda), orientador de José Queirós (à direita) no Instituto Nacional da Água e da Atmosfera da Nova Zelândia Dave Allen/NIWA

A Antárctida fica longe, muito longe, mais exactamente a 15 mil quilómetros de Portugal. Mas nem isso tem impedido os cientistas portugueses de a visitarem e desenvolverem trabalhos científicos lá. Ricardo Almeida e José Queirós são exemplo disso. O primeiro é engenheiro electrotécnico e trabalhou 15 meses na Base Halley VI, do British Antarctic Survey (BAS), na costa da Antárctida oriental. Já José Queirós é estudante do mestrado de Ecologia no Centro de Estudos do Mar e do Ambiente (Mare) e na Universidade de Coimbra e viu a paisagem da Antárctida quando estava a bordo do navio de pesca Antarctic Discovery.

Agora estes dois cientistas polares são os protagonistas de uma palestra no Pavilhão do Conhecimento, em Lisboa, com entrada gratuita, às 11h da próxima terça-feira (9 de Maio). As inscrições estão abertas no site da agência Ciência Viva.

A primeira vez que Ricardo Almeida pisou a Antárctida foi a 18 de Dezembro de 2015. E logo aí todas as suas ilusões foram desfeitas: a neve parecia areia. “Sendo português e alentejano, não tinha grande experiência com neve. Tinha a ideia de que era mais pastosa, quase como plasticina”, conta ao PÚBLICO agora já em Portugal. Saiu do continente Antárctico a 24 de Fevereiro e a imagem com que ficou é a de ter vivido no sítio “mais puro” do planeta.

Foto
Ricardo Almeida entre os pinguins Michal Krzysztofowicz

Este alentejano (natural de Campinho, uma aldeia do concelho de Reguengos de Monsaraz) de 35 anos foi para a Antárctida através de uma candidatura ao BAS, com sede em Cambridge, no Reino Unido. Ao longo de 15 meses, foi o responsável por dois radares de média frequência, que serviam para estudar a atmosfera e fazer previsões de meteorologia espacial. Além disso, Ricardo Almeida pode dizer de boca cheia que foi um “invernante na Antárctida”. Afinal, o Inverno é um dos momentos mais agrestes para se estar neste continente.

Um avião como táxi

“Durante o Inverno, torna-se tudo mais difícil. Uma tarefa que é trivial durante o Verão torna-se muito complicada no Inverno”, dizia ao PÚBLICO por telefone no final do período mais frio na Antárctida, em Dezembro de 2016 (localizámo-lo através da GPS, uma rede de cientistas portugueses espalhados pelo mundo). Durante este telefonema, Ricardo Almeida contava que nem podia sair da base devido a uma tempestade agreste lá fora. E, quando terminasse, tinha de voltar a uma das suas tarefas mais difíceis nesta estação: limpar o gelo da antena “sensível” de um radar de média frequência.

Agora recorda as histórias no conforto de uns 27º graus em Portugal. Elas são muitas, mas é da conversa com o astronauta britânico Tim Peake, a bordo da Estação Espacial Internacional, que faz questão de lembrar. O astronauta soube que os habitantes polares de Halley VI iam deslocar a base e ele próprio os contactou para conversarem. “Estávamos em situações muito diferentes, mas ao mesmo tempo muito semelhantes, porque estávamos dependentes do que se encontrava à nossa volta.” Do espaço até à Antárctida falaram sobretudo de algo tão simples como os seus quotidianos.

Mas não ficam por aqui as histórias. “Sou provavelmente aquele que esteve mais horas fora da base [durante o Inverno]”, orgulha-se de dizer. Uma fenda no gelo foi entretanto descoberta e Ricardo Almeida andou com três colegas polares, um GPS de alta precisão e uma máquina de radar de superfície a desvendar onde estaria ela. “Com isso, construímos um perfil de como a fenda se estava a propagar”, conta. Depois, foi descoberta uma segunda fissura e aí começou uma nova aventura: “Essa fenda estava a cortar o caminho a três estações, que eram estações de monitorização de GPS. Como não era possível lá chegar com uma mota de neve, tínhamos de usar um avião. Usávamos o avião praticamente como um táxi para visitar essas estações.”

Foto
O transporte de Ricardo Almeida entre as estações DR

E se Ricardo Almeida não relaciona o surgimento destas fendas directamente com o aquecimento global, não quer dizer que não tenha sentido o efeito deste fenómeno. No ano passado, soube que foi registada na Antárctida uma concentração de dióxido de carbono de 400 partes por milhão (o que significa que há 400 moléculas deste gás por cada milhão de moléculas na atmosfera). O aquecimento global tem-se feito sentir com o aumento da temperatura no continente branco: “Por regra, conseguimos atingir menos 50 graus no Inverno naquela zona, mas este ano não conseguimos.”

Neste momento, a base Halley VI está a cerca de 20 quilómetros da localização inicial e, pela primeira vez no Inverno, está desocupada, porque há o perigo de vir a entrar em colapso devido às duas fendas. “Se as coisas ficarem demasiados instáveis ou se a base continuar muito tempo assim, há a possibilidade de construir uma Halley VII noutro sítio, que é de uma nova geração.”

Foto
Pinguins em frente aos módulos de Halley VI DR

Por agora, Ricardo Almeida vai tentar explicar a quem assista à palestra de terça-feira que a ciência polar é um caminho a seguir. “Portugal tem um programa polar e conseguimos levar cientistas à Antárctida, mas durante pouco tempo e não passam lá o Inverno.” Além disso, quer que lhe façam muitas perguntas na palestra.

Já José Queirós, antes de embarcar por dois meses e meio no navio de pesca Antarctic Discovery, aproveitando a campanha de pesca para fazer as suas investigações, nunca tinha pensado que esta aventura pelos mares da Antárctida (o mar de Ross, o mar de Amundsen e o mar de Dumont D’Urville) fosse possível. “Não contava que fosse tão cedo [na sua carreira]”, diz. José Queirós tem 22 anos e no mestrado em Ecologia que está a fazer o alvo do seu estudo é a dieta de peixes e cefalópodes, como as lulas e os polvos, do oceano Antárctico. O seu trabalho a bordo consistia em abrir os estômagos dos peixes e tirar de lá as presas, para depois serem analisadas em laboratório.

Foto
José Queirós DR

Cara a cara com o maior polvo da Antárctida

E no final de Novembro (mais precisamente a 28 e 29), José Queirós lá avistou a Antárctida: “Poder ver icebergues foi muito emocionante!” Estes momentos foram vistos no mar de Ross, por exemplo.

José Queirós era o único cientista a bordo, a restante tripulação era formada por pescadores e dois observadores de pesca  neozelandeses e indonésios. E histórias não lhe faltam. Aquela que se lembra logo tem uma pitada da culinária portuguesa. Quando lhe pediram para cozinhar algo tipicamente português, José Queirós fez lulas. Mas foi uma refeição arruinada. “Acredito que seja muito bom, mas não vamos comer”, disseram-lhe os companheiros da tripulação na altura. É que trabalham com lulas e não gostam de as comer. Apenas o capitão e o cozinheiro da tripulação comeram um bocadinho, salienta.

Foto
As lulas que José Queirós à tripulação José Queirós

Mas a grande história vem a seguir: José Queirós descobriu o maior polvo da Antárctida. A navegar no mar de Dumont D’Urville, o português trabalhava quase 16 horas por dia, mas, por acaso, quando o polvo apareceu no anzol, nem estava no seu turno. Nesse dia, alguém o chamou para lhe dizer que tinha uma surpresa: um polvo gigante. Primeiro, José Queirós nem quis acreditar. Depois, caiu em si e veio a ser um dos cientistas responsáveis pela descoberta de um polvo da espécie Megaleledone setebos, com 1,15 metros e 18,5 quilos. Junto a este polvo havia um outro com 12 quilos e com 90 centímetros, tamanho máximo que se pensava que a espécie atingia.

Foto
Cientistas em contemplação do polvo gigante Dave Allen

Na palestra no Pavilhão do Conhecimento, José Queirós vai contar a rotina rígida que tinha de cumprir a bordo e o ambiente de equipa que partilhou com os pescadores. “A mensagem mais importante de se estar num barco de pesca é que não há pessoas especiais. Toda a gente ajuda toda a gente.” Depois, irá explicar a importância do papel de um biólogo na Antárctida. “Podemos ver na Antárctida o que vai acontecer daqui a uns anos em Portugal”, diz, salientando que o oceano Antárctico é muito cristalino e que ainda não sofreu muito os impactos dos seres humanos. “Ao estudarmos os albatrozes e as lulas da Antárctida, vamos poder ver os efeitos das alterações climáticas na nossa costa daqui a alguns anos. Este é um dos motivos que leva os portugueses lá”, exemplifica.

Tanto José Queirós como Ricardo Almeida querem regressar à Antárctida, mas ainda não têm datas. “Se tudo correr bem, volto daqui a dois ou três anos no máximo”, diz José Queirós. “Sim, há essa possibilidade”, responde por sua vez Ricardo Almeida, que acrescenta que agora até pensa em tirar um doutoramento. Por enquanto, vão voltar à Antárctica através de uma palestra com as suas próprias aventuras. 

Sugerir correcção
Comentar