Uma vontade omnívora de todas as músicas

Reconhecendo ter uma “memória genética” das músicas ibéricas, Sílvia Pérez Cruz tem acolhido o fado na sua música, ainda que se reclame cada vez mais universal. Em Maio e Junho visitará de novo palcos portugueses.

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Alex Rademakers

Sílvia Pérez Cruz canta dois fados. Apenas dois, extraídos do preciosíssimo reportório amaliano: Lágrima e Estranha forma de vida. Em Vestida de Nit, atira-se a este último com uma segurança de quem sabe não ter de reclamar-se filha nem enfiar-se na sombra de Amália, deslaçando-o da sua matriz fadista e acercando-o de uma canção de câmara mais familiarizada com as ruas da Andaluzia do que com o emaranhado mourisco das ruelas dos bairros típicos lisboetas. Na verdade, se há Amália nesta versão é apenas na coincidente forma com que Amália encostava a voz ao reportório espanhol, francês, mexicano ou italiano e todas aquelas canções ganhavam sempre um indesmentível travo a fado. Também aqui, Sílvia Pérez Cruz canta a partir do seu mundo e não de outro pedido de empréstimo.

Por alguma estranha razão, no entanto, criou-se um mito (infundamentado) em Espanha de que Sílvia teria raízes portuguesas. “Até há três anos”, confessa, “o fado fazia parte de mim, mas não me saía como o flamenco.” Só começou a sair, na verdade, quando se atreveu a cantar ao lado de Cuca Roseta no Festival Med, em Loulé, em 2013, precisamente Estranha forma de vida. Na altura, depois da ovação que se seguiu a essa bem-aventurada mas um pouco inconsciente primeira investida pública no fado, um amigo havia de recebê-la ao descer do palco e perguntar-lhe se fazia ideia do que lhe podia ter acontecido se o público não tivesse apreciado aquela ousadia. “Foi uma sorte não ter sabido”, ri-se, agradecida por desconhecer as implicações daquele gesto de audácia involuntária.

Voltou depois a fazê-lo com o pianista Júlio Resende no Centro Cultural de Belém, acabada de enxugar as lágrimas de um dia especialmente difícil. “Foi uma ocasião muito especial para mim e tive uma sensação de transe”, recorda. Dessa vez, a escolha foi, apropriadamente, Lágrima e o registo, talvez pela experiência emocional por que acabava de passar, foi algo tomado pelo excesso que as suas capacidades técnicas permitem mas nem sempre se justificam. Esta Estranha forma de vida que agora canta em Vestida de Nit é feita de uma outra carne, mais contida e sintonizada com o equilíbrio certo que torna o tema também um pouco seu. O fado (estes dois temas, em específico) foi-se tornando uma das músicas que diz cantar por prazer e que, portanto, aparece com frequência nos concertos solitários que vem fazendo desde há dois anos.

Sílvia acha mais razoável que se diga que tem uma voz ibérica por se achar uma descendente dos “cantos das abuelas”, cujos reportórios populares sempre viajaram sem grande respeito pelas fronteiras por ambos os países – “a nível fisiológico ou de memória genética das gerações passadas há cantos que ressoam em mim”, acredita. Mas a sua questão é sempre a de a música corresponder a um sentimento de liberdade crescente. “A minha voz vai mudando com a idade, com a morte, com a vida, com as estações, com o facto de dormir mais ou menos horas”, resume. “Com o tempo sinto que tenho mais cores, mais registos e sinto-me realmente do mundo.” Em vez de achar-se representante de qualquer geografia, diverte-se quando lhe sai a comparação quase new age de sentir-se como o ar. Mas aquilo que está por detrás dessa imagem, de trânsito absolutamente livre e sem pertencer a um lugar, é uma vontade omnívora de buscar músicas em todos os recantos possíveis. Em Vestida de Nit chegam da Venezuela, do Peru, do Brasil, naturalmente de Espanha (composições do cantautor anti-ditadura Chico Sánchez Ferlosio e de uma das maiores referências da música catalã, Lluís Llach) e de Portugal.

Com a gravação do álbum anterior, Granada, Sílvia Pérez Cruz diz ter descoberto que não é tanto a música que pode vangloriar-se de constituir uma linguagem universal, mas sim “a emoção, o peso e a entrega”. “É com isso que tem que ver a minha busca. A nível artístico e pessoal, procuro o equilíbrio entre a humildade e a segurança – mas  é tudo muto abstracto.” A informação que recolhe nesse contínuo processo de busca serve, por exemplo, para que não lhe recusem aquilo que quer ouvir. “Recordo-me de uma vez com uma orquestra em que o violinista tentava dizer-me que não podia fazer algo que eu já tinha feito com outros violinistas”, conta. “Os anos servem para isto, para saber o que quero e não me deixar enganar.” E também para não se encolher quando se trata de trabalhar com outros músicos e sabe estar a obrigá-los a horas extra para ter a certeza de que qualquer tema a ser interpretado acompanha as suas necessidades de espaço.

Tendo actuado no Coliseu dos Recreios em 2012, na primeira parte de António Zambujo – que gravou com ela dois temas da edição portuguesa de 11 de Novembre –, Sílvia Pérez Cruz foi-se tornando uma presença regular nos palcos nacionais, tendo-se apresentado com o quinteto com que gravou Vestida de Nit na Fundação Calouste Gulbenkian em 2016. Nos próximos meses regressa nesse formato, com concertos em Coimbra (Convento de São Francisco, 27 de Maio), Aveiro (Teatro Aveirense, 26 de Junho), Leiria (Teatro José Lúcio da Silva, 28) e Lisboa (Centro Cultural de Belém, 29).

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