Uma colecção de fotografia, como uma aventura de amor

O Centro de Artes Visuais, em Coimbra, revela pela primeira vez o núcleo fotográfico da Colecção Norlinda e José Lima. Albano da Silva Pereira, responsável pela curadoria, diz que é como “um diamante em bruto que ainda está por facetar”.

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Nobuyoshi Araki, Kinbaku (bondage), 2000 Colecção Norlinda e José Lima (fotografia: Aníbal Lemos)
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Andy Warhol, s/título, 1956 Colecção Norlinda e José Lima (fotografia: Aníbal Lemos)
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Cindy Sherman, s/t (Cosmo Cover Girl), 1990 Colecção Norlinda e José Lima (fotografia: Aníbal Lemos)
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João Louro, Site Scene #01 (LA Confidential), 2007 Colecção Norlinda e José Lima (fotografia: Aníbal Lemos)
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João Maria Gusmão + Pedro Paiva, O Oculto, 2007 Colecção Norlinda e José Lima (fotografia: Aníbal Lemos)
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Nan Goldin, Robin at Breakfast, Boston, 1977. Colecção Norlinda e José Lima (fotografia: Aníbal Lemos)
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Thomas Struth, Gasse mit Platanen, Wuhan, 1997 Colecção Norlinda e José Lima (fotografia: Aníbal Lemos)
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Vanessa Beecroft, VB40.067, 1999 Colecção Norlinda e José Lima (fotografia: Aníbal Lemos)
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Eva Lotz, La Arena Escribe..., 1995 Colecção Norlinda e José Lima (fotografia: Aníbal Lemos)
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Candida Höfer, Volkswagenwerk Wolfsburg I, 1998 Colecção Norlinda e José Lima (fotografia: Aníbal Lemos)

Albano da Silva Pereira não precisou de pensar muito para concordar com a palavra “provocação”, quando a pergunta andou à volta das motivações que o levaram a pegar no núcleo de fotografia da colecção Norlinda e José Lima para mostrar parte dele no Centro de Artes Visuais (CAV), em Coimbra. “Provocação, no bom sentido”, entenda-se, porque a partir de Un Certain Regard, exposição inaugurada este fim-de-semana, a ideia é não só incentivar a reflexão em torno da fotografia contemporânea e da sua relação com outras artes, mas também desafiar “construtiva e criticamente” o próprio coleccionador e a forma como foi alargando o seu espólio ligado ao suporte fotográfico.

“Esta colecção faz parte da minha carne e do meu espírito”, dizia José Lima em 2013, quando as obras de arte que andou a comprar desde o início dos anos 80 “saíram do armário” para a primeira exposição na Oliva Creative Factory, em São João da Madeira. Esse momento permitiu perceber o quão ecléctico é este importante núcleo que vai do pós-guerra à actualidade e pôs a descoberto a forma pouco sistemática como foi construído. O que demonstra uma aproximação “emocional” à arte, sem lista de compras pré-definida. Mais do que um método (ou do que a ausência dele), José Lima revelou (para além de um quinto da sua colecção, cerca de 150 de um total de mil peças) uma maneira “aventureira” de estar no coleccionismo de arte, postura em que Albano da Silva Pereira vê mais forças do que fraquezas.

Quando chegou o momento de escolher as peças para esta primeira exposição apontada ao núcleo de fotografia da colecção, o fundador dos extintos Encontros de Coimbra e director do CAV viu-se perante um “bico-de-obra”, dada a falta de critérios unificadores, linhas de coerência (as fraquezas) que dessem forma a “um corpus de fotografia”. Há “peças extremamente importantes”, mas (ainda) não é “uma verdadeira colecção de fotografia contemporânea”, diz o curador. “A escolha foi muito difícil. [A colecção] não foi feita com a ajuda de um especialista da matéria, foi sendo feita a partir de compras avulsas. É uma situação que torna o trabalho do curador mais complicado. A partir das limitações e dos gostos do coleccionador, procurei diálogos entre as obras fotográficas e também entre estas e peças de escultura de autores que que estarão mais próximos da densidade e do realismo da fotografia, como Noé Sendas, Rui Chafes e Diogo Pimentão. Também há nomes ligados ao vídeo, como João Maria Gusmão & Pedro Paiva, ao desenho e à pintura”, explicou ao PÚBLICO Albano da Silva Pereira.

Para o director do CAV, o núcleo de fotografia da Colecção Norlinda e José Lima “é muito singular”, quer pela maneira como foi composto, como pelo personagem que o criou, um homem “discreto”, “cativante”, que habitualmente se apresenta como “sapateiro”. Na verdade, é dono de uma fábrica de calçado que dá trabalho a 70 pessoas e que exporta o que produz, razão pela qual as viagens se tornaram uma constante na vida deste empresário de 77 anos, que as aproveitou para visitar museus e galerias um pouco por todo mundo. “Ao contrário de instituições públicas ou de colecções privadas de relevo que tiveram critérios curatoriais e de especialistas, esta colecção não os teve. Mas tem o mérito de ser um diamante em bruto que ainda está por facetar, e que deve ser trabalhado do ponto de vista da curadoria. Penso que a partir desta exposição José Lima deveria reformular as novas aquisições de maneira a preencher lacunas, a corrigir ou a trocar peças que estão a mais. A sua colecção precisa de mais equilíbrio.”

Ainda assim, a forma íntima, silenciosa e instintiva como este núcleo de fotografia se ergueu (“como se fosse uma aventura de amor por alguém que não se conhece”) deu-lhe um cunho identitário forte: “É uma colecção que é a imagem do coleccionador, muito autêntica, genuína.” E aqui começam as forças. “As colecções de arte contemporânea são quase todas iguais, feitas de múltiplos, e as colecções de fotografia são feitas de edições. Como umas e outras são vendidas por curadores que trabalham por modas, há sempre os mesmos autores, as mesmas peças. Aqui temos uma identidade que é ‘chocante’, no bom sentido da palavra, e que é, ao mesmo tempo, gratificante… nota-se uma vontade, uma fraternidade e uma solidariedade do coleccionador, o que não é muito vulgar.”

Faíscas

Mas, afinal, que importância tem este núcleo de imagens? É sobretudo uma colecção de fotografia contemporânea pós-modernista que foi sendo alargada em função da “curiosidade” de José Lima e da sua relação com o mercado. Albano encontra peças de autores “decisivos” na arte contemporânea mundial. E destaca dois retratos “extraordinários” de Josef Beuys, obras de Alberto García-Alix e peças “verdadeiramente surpreendentes” de Cindy Sherman, Nan Goldin, Sophie Calle e Vanessa Beecroft. (“José Lima é uma pessoa muito discreta, anda nos meios das galerias e ouve muito bem. Este homem ouviu e ouviu bem, tem essa qualidade.”)

Em paralelo a autores consagrados na cena internacional, o empresário de São João da Madeira – que já tinha mostrado algumas fotografias da sua colecção na exposição inaugural e, mais recentemente, na exposição There is no Why, There is no I – Corpo e Fisicalidade, no Centro de Cultura Contemporânea de Castelo Branco – foi comprando (“numa atitude séria e motivadora”) autores portugueses de várias gerações, entre os quais Jorge Molder, Paulo Nozolino, João Penalva, André Príncipe, André Cepeda, Nuno Cera e Rui Toscano e Julia Ventura. “É uma colecção extremamente meritória, com muita fotografia internacional e não exclusivamente ‘patriótica’. Tem um olhar universal. E para além de comprar um conjunto de autores credenciados ‘avulso’, alguns deles muito famosos, compra também artistas emergentes portugueses, o que é de louvar.”

O curador sublinha ainda a preocupação de José Lima de fazer chegar a sua colecção às pessoas: “Não é uma pessoa que olhe para o valor da obra de arte em si, em numerário. Ele olha para o valor reprodutivo e formativo que a arte pode ter nas escolas e na sociedade.”

Para Un Certain Regard (que terá obras de 32 artistas), Albano da Silva Pereira não quis dar exclusividade ao fotográfico e procurou construir diálogos com outros suportes, incluindo, por exemplo, dois desenhos de Andy Warhol (“Não podemos – não devemos – tornar as coisas herméticas, transformá-las em barreiras”). A partir de um conjunto de obras “extremamente radical e restritivo”, tentou “criar um objecto diferenciado e destacado da própria colecção”. Isto, não deixando de exercer a sua filosofia, o seu gosto e a sua sensibilidade, que é mais “festiva” e “provocante”, menos “linear”, “branca” e “clássica”. “Quando se constrói uma exposição a partir de uma colecção como esta, é como se estivéssemos a fazer um puzzle – o que temos de fazer é tentar encontrar as peças para as ordenar.”

E foi nesse espírito dialogante que juntou uma enorme fotografia que André Príncipe fez a Nobuyoshi Araki no bar do fotógrafo em Tóquio com uma fotografia da autoria do próprio Araki (e as suas típicas sessões de bondage japonês, kinbaku) e outra do alemão Thomas Struth, que mostra uma paisagem representativa do Japão ancestral. O resultado é um tríptico de autores com olhares muito díspares sobre o Japão, que estavam juntos na mesma colecção sem nunca terem estado verdadeiramente lado a lado. É o tipo de provocação com que Albano da Silva Pereira procura fazer faísca, tanto em quem comprou aquelas três obras, como em quem agora as pode admirar.

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