Revoluções e reencontros na Casa da Música e no Teatro Aveirense

Decanos da composição lusa e britânica celebrados em palcos diferentes nas cidades do Porto e de Aveiro, num fim-de-semana evocativo do pioneirismo dos compositores portugueses e ingleses da geração de 60.

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O Remix Ensemble interpretou obras de Peter Maxwell Davis e Arnold Schönberg ALEXANDRE DELMAR/CASA DA MÚSICA
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O maestro Peter Rundel ALEXANDRE DELMAR/CASA DA MÚSICA
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A Orquestra Sinfónica do Porto Casa da Música ALEXANDRE DELMAR/CASA DA MÚSICA
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O saxofonista alemão Marcus Weiss realizou uma performance sublime ALEXANDRE DELMAR/CASA DA MÚSICA
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Cândido Lima junto ao histórico Revox DR

Sucedendo ao histórico feriado do 25 de Abril e antecedendo o histórico feriado do 1 de Maio, o fim-de-semana na Casa da Música foi de encerramento da 12.ª edição do ciclo Música & Revolução, centrando-se na apresentação de obras que causaram escândalo nos famosos concertos Proms da BBC, com repertório devidamente enquadrado no Ano Britânico e na Residência do compositor Harrison Birtwistle.

O concerto de sábado foi partilhado pelo Remix Ensemble e pela Orquestra Sinfónica do Porto Casa da Música. Na primeira parte, o Remix apresentou Antechrist, obra composta em 1967 para o ensemble Pierrot Players pelo compositor britânico Peter Maxwell Davis. Apesar da sua brevidade, a obra apresenta um conjunto de características reveladoras do estilo musical de Davis nas décadas de 60 e 70, nomeadamente a influência da música antiga e a tendência para a deformação grotesca de determinados elementos no seio de um discurso de matriz expressionista. A peça parte de uma simples transcrição de um motete do século XIII que vai sendo gradualmente impregnado de elementos atonais que o transformam por completo. O discurso musical é no entanto translúcido, tirando pleno partido da formação camerística. A interpretação do Remix Ensemble foi exemplar, com uma execução segura e rigorosa dos sete instrumentistas, que produziram uma sonoridade sempre equilibrada, transparente e muito expressiva.

Na segunda peça, a Sinfonia de câmara Op. 9 de Arnold Schönberg, de estilo e duração radicalmente diferentes, o grupo (agora com 15 instrumentistas) realizou uma interpretação de irrepreensível clareza contrapontística, respeitando a natureza simultaneamente sinfónica e camerística do discurso musical.

A segunda parte começou com uma das mais importantes e revolucionárias composições sinfónicas da música do século XX: as Cinco peças para orquestra op. 16 de Schönberg. Composto em 1909, este conjunto de breves peças é um dos melhores exemplos do modernismo musical das primeiras décadas do século XX. A originalidade do seu discurso musical, sobretudo a total emancipação da dissonância e a orquestração de inigualável imaginação tímbrica e solidez técnica, proporciona um colorido até então nunca escutado e que ainda hoje surpreende o ouvinte conhecedor. Estreadas em Londres nos Proms  de 1912, demonstrando um admirável espírito de abertura à música contemporânea por parte dos programadores do festival, as opus 16 foram mal recebidas pelo público, dando origem a um dos vários escândalos musicais que marcam a história da música do século XX.

Quanto à interpretação da Orquestra Sinfónica do Porto, apesar de ter sido em geral boa, teve alguns desequilíbrios entre naipes e por vezes faltou fluidez ao discurso musical, nomeadamente em Premonições, cuja interpretação foi assumidamente mais lenta do que o Molto allegro indicado na partitura, e em Cores, onde a desafinação das cordas perturbou a luminosidade e o colorido da orquestração.

Curiosamente, volvidas oito décadas, a estreia de Panic de Harrison Birtwistle no concerto de encerramento dos Proms de 1995 originou uma reacção igualmente violenta por parte do público e da crítica mais conservadora, que comparou a obra a "lixo". Como é habitual na música deste compositor, Panic é uma obra marcada pela constante tensão harmónica e densidade contrapontística, com poucos momentos de repouso, exigindo aos intérpretes uma grande capacidade de gestão da energia e da resistência física. O extraordinário saxofonista alemão Marcus Weiss realizou uma performance sublime, que impressionou pelo rigor e pelo vigor da interpretação, assim como pela solidez técnica e pela riqueza sonora. Durante cerca de 20 minutos o saxofone tocou de forma praticamente contínua, dialogando e competindo, de modo hercúleo mas sempre muito expressivo, com a bateria e com uma orquestra exclusivamente constituída por instrumentos de sopro e percussão. O baterista Christian Dierstein teve também uma excelente prestação, contribuindo de forma decisiva para o impacto sonoro desta obra violenta, que procura criar o pânico e o caos ao longo do discurso musical.

Também neste mesmo fim-de-semana foi inaugurado o festival Reencontros de Música Contemporânea – Aveiro 2017, dedicado à criação musical portuguesa e dando particular destaque aos compositores da geração de 60. Com um programa cuidadosamente delineado, seguindo o espírito dos saudosos Encontros de Música Contemporânea da Fundação Calouste Gulbenkian, este novo festival detém um enorme interesse cultural, contando ao longo de dez dias com um interessante conjunto de 30 eventos, incluindo 16 concertos, conferências, actividades educativas e uma instalação audiovisual interactiva.

O concerto de domingo, no Teatro Aveirense, consistiu na recriação do concerto inaugural do Grupo Música Nova realizado no Ateneu Comercial do Porto em 1976, sob a direcção do seu fundador, o compositor Cândido Lima (este mesmo conceito guiou o concerto realizado na véspera pelo Grupo de Câmara de Lisboa, fundado e dirigido por Jorge Peixinho até ao seu falecimento prematuro em 1995).

O concerto do Grupo Música Nova foi um momento intimista, em que música, memória e emoção se confundiram. Mais do que avaliar o rigor interpretativo e o virtuosismo da execução interessou sobretudo partilhar o espírito do concerto inaugural do agrupamento, recuperando o profundo significado que este teve no seio da música erudita portuguesa. Tratou-se assim de um importante e enriquecedor testemunho, realizado na primeira pessoa por Cândido Lima.

O programa consistiu numa selecção variada mas coerente de composições, que incluiu obras a solo, de câmara e em fita magnética, dos então ainda jovens compositores Henri Pousseur, Charles Boone, Helmut Biele, Amílcar Vasques Dias e Cândido Lima. A par destas foram também interpretadas composições de referências da música europeia da primeira metade do século XX, assinalando uma clara consciência histórica da evolução musical contemporânea, à época raramente divulgada em Portugal.

Um dos aspectos mais evidentes da orientação artística e musical do Grupo Música Nova – tal como no caso dos grupos congéneres fundados e dirigidos por Jorge Peixinho, Álvaro Salazar e Constança Capdeville – é o seu corajoso distanciamento em relação ao status quo musical de um país acabado de sair de uma longa ditadura, cuja política cultural se caracterizou pela ausência de liberdade criativa e pela forte censura às tendências vanguardistas. Neste contexto, o concerto do Grupo Música Nova exprimiu o espírito genuinamente pioneiro e revolucionário com que Cândido Lima e os músicos que em 1976 o acompanharam assumiram contra o conservadorismo e a ignorância.

No palco do Teatro Aveirense, o concerto teve diversos momentos de elevado interesse musical. Destacamos a projecção sonora de Viagem para fita magnética, composta em 1976 por Amílcar Vasques Dias, recorrendo aos meios tecnológicos originais, as bobines originalmente utilizadas no concerto de 1976 e um histórico gravador Revox. Também a excelente interpretação de Cândido Lima na sua composição Projecções para piano e fita magnética, de 1969-70. Ainda uma versão idealizada e muito bem interpretada por Hugues Kesteman de Sang-Ge-Sang, composta em 1976 por Cândido Lima. E por último a transcrição para piano, flauta e clarinete, realizada por Cândido Lima, de Apostrophe et six réflexions, de Henri Pousseur, obra de 1964-66.

Esperamos que este festival inovador, até pelo factor de descentralização cultural que representa, prospere e que as duas associações sem fins lucrativos que o conceberam – Arte no Tempo (Aveiro) e Atelier de Composição (Porto) – continuem a reunir as condições necessárias para o realizar com igual qualidade nos anos vindouros.

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