Médicos dizem que perderam 500 euros por mês durante os anos de crise

Procura do Serviço Nacional de Saúde aumentou durante anos de austeridade, mas oferta de serviços diminuiu, conclui estudo sobre reacções de médicos à crise

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Alguns deste profissionais trabalham também em hospitais e clínicas privadas Rui Gaudencio

Os médicos que trabalham no Serviço Nacional de Saúde (SNS) sofreram uma redução superior a 30% do seu salário durante os anos de crise, uma diminuição que, para a maior parte, rondou os 500 euros líquidos por mês, indicam as conclusões de um estudo publicado na última edição da Acta Médica Portuguesa. O impacto da crise económica e financeira no rendimento dos médicos que trabalham no SNS foi, assim, significativo.

Durante os anos de crise (2010 a 2015), os médicos inquiridos para este trabalho deram conta de um aumento da procura dentro do SNS e, em simultâneo, uma redução dos serviços oferecidos, destacam os autores deste trabalho conjunto do Instituto de Higiene e Medicina Tropical, Escola Nacional de Saúde Pública, Nova School of Business and Economics e o Centro de Investigação em Saúde Pública. Para o estudo Percepções e reacções à crise económica dos médicos no SNS foi inquirida uma amostra aleatória de 484 profissionais do Hospital de São José (Lisboa) e dos agrupamentos de centros de saúde de Cascais e da Amadora.

O incremento da procura dos serviços públicos pode ser explicado pelo aumento de algumas doenças — sobretudo mentais — relacionadas com o desemprego que “tipicamente acontece durante uma crise económica”, segundo os autores. Já no sector privado, frisam, os inquiridos destacaram o crescimento dos grandes grupos hospitalares e das clínicas em detrimento dos antigos consultórios privados.

Do ponto de vista financeiro, muitos dos entrevistados queixaram-se de que o seu salário no SNS diminuiu mais de 30%, uma redução não compensada por um decréscimo correspondente no horário de trabalho. Pelo contrário, o horário cresceu duas horas por semana.

Alguns deste profissionais trabalham também em hospitais e clínicas privadas. E aqui admitem não ter sentido o impacto da crise: para quase metade, as horas de trabalho e os rendimentos mantiveram-se constantes entre 2010 e 2015 (16 horas por semana e 2 mil euros mensais, em média). Mais de 80% asseguraram, aliás, que recomendariam o seu trabalho no sector privado a um colega.

Outro sinal do mal-estar sentido por muitos inquiridos na sua actividade no sector público passa por uma menor disponibilidade para fazer horas adicionais: quase dois terços declararam não estar dispostos a isso, mesmo recebendo um pagamento adicional, enquanto 60% dos que acumulam no privado mostraram-se disponíveis para trabalhar mais ali, com uma remuneração extra média de 40 euros por hora.

Na prática, além dos reflexos a nível pessoal — 68% queixaram-se de ter tido de mudar o seu estilo de vida por causa da crise económica —, o que os resultados deste trabalho mostram é que os anos de austeridade implicaram mudanças substanciais no mercado de serviços médicos, com o aumento da procura e uma diminuição da oferta no sector público e o acréscimo da oferta no sector privado. Segundo os entrevistados, terão sido “os seguros de saúde e alguns agentes económicos privados” a contribuir para a alteração do perfil da prestação de cuidados de saúde no país.

Os médicos de família das unidades de saúde familiar do modelo B (que têm contratos de exclusividade e incentivos) foram os menos afectados, ao contrário dos especialistas hospitalares, que sentiram a crise com maior acuidade.

A nível pessoal, admitiram sentir uma reduzida satisfação nas unidades públicas, ao contrário do que acontece nas privadas. Em compensação, o gosto pela profissão, a independência e a flexibilidade do trabalho foram os factores de “alívio” mais mencionados.

Apesar das medidas de austeridade, entre os médicos que ficaram no sector público “não se encontraram sinais de mudança substancial, em termos de fuga para o sector privado e para o estrangeiro”, destaca o estudo. Um fenómeno que poderá ser explicado pela “falta de oportunidades oferecidas no privado ou pela natureza da amostra”. Apesar de os médicos estarem insatisfeitos com as novas condições, “provavelmente ainda não se terá atingido uma situação crítica”, talvez porque “as condições financeiras iniciais da profissão são melhores em comparação com outras profissões”.

Também o prestígio da profissão no país e o estatuto socioeconómico elevado comparativamente com outras classes serão factores que contrariam uma tendência para emigrar, especulam. No total, apenas 15% dos inquiridos declararam que consideram a emigração como uma opção para o futuro. Mas, como a amostra apenas contempla médicos a trabalhar no SNS (ainda que alguns em simultâneo no privado), pode “enviesar os resultados quanto à intenção de sair para o privado ou de emigrar”. Os motivos invocados para emigrar são a insatisfação com as perspectivas de carreira, com o salário actual e a falta de valorização da profissão no país.

Como contraponto, os factores mais importantes mencionados para permanecer foram “gostar muito” do país e da profissão médica e os compromissos familiares.

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