Milagre ou construção? Há uma Fátima diferente para cada um

O PÚBLICO falou com personalidades sem crença religiosa de diversas áreas para tentar perceber como olham para o fenómeno que nasceu na Cova da Iria.

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Centenas de milhares de pessoas fazem todos os anos centenas de quilómetros até Fátima Nelson Garrido

Milagre, mistificação, construção. Sobre Fátima já se disse e escreveu profusamente, nenhuma posição é unânime e mesmo dentro da Igreja Católica não há uma visão única. Também não é um dogma de fé. Mas Fátima é um fenómeno cultural. Este será, porventura, um dos poucos consensos a rodear o tema.

Tanto mobiliza massas como provoca movimentações nas placas tectónicas da opinião pública portuguesa - a recentemente decretada tolerância de ponto para o dia 12 de Maio é só um exemplo. Se os crentes se dividem entre leituras literais e não literais de Fátima e da sua mensagem, o que significa para quem não acredita na divina providência? O PÚBLICO falou com um filósofo, um historiador, um cientista e com um cineasta para observar Fátima pela lente de ateus e agnósticos.  

José Gil, professor e filósofo, dedica parte das suas reflexões à questão da identidade e encara Fátima de um ponto de vista etnológico. “É um fenómeno social e cultural” fruto de “uma montagem institucional e de uma crença muito forte e espontânea”, diz. É isto, embora hoje já não haja, acrescenta, “espontaneidade pura”, uma vez que “está imensamente trabalhado” por vários agentes, desde a Igreja aos media. “É uma construção”, conclui o autor de Portugal, Hoje - O Medo de Existir.

A forma como Fernando Rosas olha para Fátima não consegue desligar-se da sua actividade como historiador. O próprio diz que se debruça sobre o assunto como tal, “com a frieza e a objetividade própria”, procurando analisá-lo e explicá-lo. Assumindo-se como ateu, o professor catedrático jubilado que estudou amplamente o período do Estado Novo explica a manutenção de Fátima ao longo do tempo com dois factores: a religiosidade popular e a agenda política da Igreja Católica.

O historiador entende que essa agenda “foi determinante para escolher um milagre e permitir que a religiosidade popular se desenvolvesse à volta dele”. Fátima “é muito importante na campanha de recristianização” a partir de 1930, que coincide com a época em que Salazar se torna “o homem dominante na ditadura nacional”. “Entre Estado Novo e Fátima houve uma permanente confusão”, diz. Depois, os segredos “obedeceram a uma clara manipulação política”.

O também fundador do Bloco de Esquerda faz referência ao cardeal Joseph Ratzinger, quando este era prefeito para a Congregação da Doutrina da Fé. O agora Papa emérito escreveu em 2000 um comentário teológico em que entende a experiência de Jacinta, Lúcia e Francisco como “revelações privadas”. O texto, interpreta Fernando Rosas, “ao negar as aparições e ao fazer delas visões puramente subjectivas, pode resumir-se a 'a cada um a sua Fátima' ”.

Assim, “se tudo se resume a visões individuais, filtradas pela cultura da época, os milagres banalizam-se” comprometendo “a mobilização popular, que é muito ligada a essa mitologia das aparições”.

Uma visão da ciência

Para o cientista João Caraça, a fé não se resume ao divino. “Tenho fé na espécie humana, na possibilidade de criar uma sociedade melhor”, afirma. “O que não se consegue explicar tem que ser investigado”, sendo que as leis da física e da química explicam como é que a vida emerge.

“Se houver alguma coisa de sobrenatural, pode estar ou no infinitamente grande ou no infinitamente pequeno”. O físico nuclear fundamenta assim o seu agnosticismo. Olha para o fenómeno da Cova da Iria como o resultado das “manifestações de uma realidade interior”, algo “de carácter individual” que “não é susceptível de ser medido”. Mesmo que isso seja sentido por várias pessoas, “não dá uma validade a essa manifestação”.

Fátima teria “um interesse particular” se fosse caso único no mundo, avalia. Assim os cientistas teriam que perceber “porque é que aquilo aconteceu”. Mas há muitos registos de manifestações de “pessoas que sentem conforto na religião e que tiveram experiências místicas”, remata o também director do serviço de ciência da Gulbenkian.

Já João Canijo fala do tema com o afastamento de um não-crente, mas com a proximidade de alguém que fez dele um instrumento de trabalho. O último filme do realizador, que estreou nesta semana, é precisamente Fátima e a sua narrativa decorre ao longo de uma peregrinação até ao santuário.  

Para preparar o filme, tanto ele como o elenco passaram pela experiência física da sua própria peregrinação. Olha para Fátima “com muita impressão e muita interrogação”, admite, ao “não entender como é que a necessidade de Deus, de uma crença ou de uma fé pode levar as pessoas a fazerem um esforço e um sacrifício tão grande para tentar uma aproximação a Nossa Senhora”. A película explora o paradoxo entre essa necessidade de uma espiritualidade e a natureza humana.

Centenas de milhares de pessoas fazem todos os anos centenas de quilómetros para chegarem a Fátima. Mas não é essa a única modalidade de entrega física ligada ao santuário. João Caraça já passou pelo santuário e as imagens que recorda são de pessoas a pagar promessas numa “marcha de joelhos”. “Fez-me sempre muita aflição, ver as pessoas a acreditarem que aquela era uma maneira de aliviar os seus males”.

Papa Francisco, uma figura de hoje

Mais uma amostra de que em relação a Fátima não há uma extensa unanimidade é a decisão do Governo de decretar tolerância de ponto para o dia 12 de Maio, a sexta-feira em que o Sumo Pontífice chega a Portugal. O anúncio gerou críticas e debate sobre a laicidade do Estado. Fernando Rosas é contra, mas para José Gil justifica-se.

“Temos que ver a vinda deste Papa como uma figura não só religiosa, mas também como um fenómeno cultural”, observa José Gil. E é a essa luz, defende, que a tolerância de ponto deve ser concedida. “Se o Nelson Mandela em vida viesse a Portugal e o Governo concedesse uma tolerância de ponto para o povo ir vê-lo, as pessoas estariam de acordo ou não? Claro que estariam”. Isto porque Nelson Mandela é, tal como o Papa Francisco, avalia o filósofo, “uma figura produtora e eminente – não é só simbólica – da cultura política, humanitária e positiva de hoje”.

Com raízes numa época histórica tumultuosa, Fátima ajudou a moldar o século XX português. Como seria Portugal sem Fátima? “É um exercício inconsequente”, considera Fernando Rosas, para quem “Fátima aparece fruto de um contexto histórico, de todo um pathos de tragédia nacional que chama ao providencialismo divino”.

Para dar resposta a essa questão, ensaia José Gil, teria que se imaginar um outro elemento que viesse ocupar o seu lugar e o da religião. “Esse elemento não sei qual é.” O filósofo recorre a Fernando Pessoa para falar da religião como “um factor imprescindível de coesão popular”, embora com os seus riscos.  

João Canijo crê que “o mais importante não é acreditar que os milagres aconteceram. O importante é que milhões de pessoas comungam dessa crença. Esse é que é o fenómeno”.

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