O cacau é como o azeite, como a salsa, como o vinho

O italiano Claudio Corallo diz que faz em São Tomé e Príncipe o melhor chocolate do mundo. Como? Ele até conta, mas “as pessoas gostam de segredos menos cansativos”.

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Inês Gonçalves

Guarda cafés “que dão arrepios”, de tão aromáticos que são. Na sala de sua casa, em São Tomé, há um discreto quadro na parede com papelinhos correspondentes aos lotes de café que produziu desde 2000. Mas concentramo-nos no que está em cima da mesa em frente aos dois sofás: o chocolate Corallo. Claudio Corallo garante que faz o melhor chocolate do mundo e aqui estão estas discretas caixas de cartão a desafiar quem disser o contrário.

Nasceu na zona de Florença, numa família totalmente dedicada ao azeite. Em 1974, mudou-se para o Zaire, actual República Democrática do Congo, para plantar café, tinha então 23 anos (tem agora uns enérgicos 66). Quando a situação política se complicou, na segunda metade da década de 1990, foi obrigado a abandonar o país. Já tinha passado pela Bolívia, acabou em São Tomé e Príncipe.

Estivemos no Terreiro Velho, a roça do Príncipe onde produz cacau, café e pimenta. Mas a conversa foi em sua casa, na capital, onde está também o laboratório. Talvez seja inesperado ouvir que há semelhanças entre um cacaueiro e uma oliveira. 

Porque é que o seu cacau é bom? Qual é a principal característica?

Eu! Sim, não há dúvida. Na Bolívia, fizemos o melhor café do país; no Zaire, era considerado o melhor robusta do mundo, e no mercado valia muito mais do que os outros. Fazia um café extraordinário, que não tinha nada a ver com o café comercial. No Príncipe, faço também café libérica, que é super-apreciado porque é superperfumado. Fazemos cacau, e é a mesma coisa.

É como ter duas vinhas no mesmo terroir: uma dá um superbom vinho, a outra não. Qual é a diferença? É o homem que produz. É normal, não? Dá-se o mesmo ingrediente a dois cozinheiros e eu faço uma porcaria, o outro uma coisa super.

Tem a ver com a forma como é tratado durante o crescimento da planta?

Se você tiver uma cadeira, bem feita, leve, forte, linda, e perguntar ao marceneiro: “Qual é o segredo?”, ele olha para si e diz: “Faço marcenaria há 60 anos”. É o meu trabalho, faço com prazer e com cuidado. Toda a gente gosta de saber o segredo, a planta, a variedade, a terra, o clima...

Aqui muda muito o terroir, porque [os terrenos] são pequenos, há muitas colinas, mas nós trabalhamos em diferentes terroirs e a qualidade é sempre elevada. A pimenta que fazemos é fantástica. A baunilha está [plantada] há 19 anos e só este ano é que estamos a trabalhar com ela. É espontânea: deixámos brotar e 17 anos depois, três plantas, num raio de 50 metros, deram vagem entre 8 e 12 metros de altura. Deixei a vagem rebentar na planta, plantei outra baunilha da mesma estaca, e no ano passado mais plantas produziram, na mesma zona, sempre entre 8 e 12 metros de altura. Tirei só seis vagens, deixei o resto, e este ano está novamente a florescer. [Levanta-se, desaparece da sala e regressa com um frasco de vidro grande, com meia dúzia de vagens de baunilha. Abre o frasco e passa-o a alguma distância do nosso nariz]. Isto é só uma passagem rápida para dar uma ideia. É incrível. Olha o tamanho desta vagem!

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"É como ter duas vinhas no mesmo terroir: uma dá um superbom vinho, a outra não. Qual é a diferença? É o homem que produz." Inês Gonçalves

Já a utilizou?

Já utilizei para uma prova. Quero apanhá-la madura na planta, espontânea, porque diverte-me ver até onde se pode chegar com a qualidade de um produto, cuidando tudo do início até ao fim.

É essa a sua marca, não é?

É uma característica comum a todos os meus produtos. Sou conhecido no mundo por isso. No Zaire, exportava contentores com sacos de 60 quilos, cada contentor tinha 18 toneladas. Aqui para fazer 18 toneladas preciso de três anos. As plantas reproduzem-se pouco, com rendimentos muito baixos. É uma dor de cabeça. Mas estamos com um produto que é um indicador [de qualidade]. Esta [pega numa caixa de grãos de café cobertos de chocolate] são três variedades da mesma espécie, cultivadas no mesmo campo, trabalhadas da mesma maneira e tem três sabores totalmente diferentes. É como experimentar três copos de vinho tinto, derivados de três castas diferentes, cultivadas na mesma vinha, vinificadas da mesma forma, na mesma adega, pela mesma pessoa. A diferença de paladar deve-se à casta. Com a pimenta a mesma coisa: a mesma pimenta trabalhada de duas maneiras diferentes dá dois perfumes diferentes.

Porque escolheu São Tomé?

Porque é perto. Vinha do Zaire, actual RDC. Tinha lá as minhas plantações. De Kinshasa até aqui são 1350 quilómetros. Para deixar a família em lugar seguro preferi deixá-la aqui, perto do mar. Claro que sabia que havia café super-interessante, que havia cacau. Mas o cacau de São Tomé no mercado vale tanto como os outros cacaus.

O que produzia no Zaire? Só café?

Só café. Era no meio do mato, uma coisa fantástica, mas tivemos que fugir. Quando cheguei aqui não era para trabalhar. Mas comecei a ver as plantas de café e fazia as minhas provas, por curiosidade. Fiquei cá três anos para perceber se dava para organizar uma base.

Já tinha experimentado fazer chocolate?

Cheguei ao chocolate absolutamente por acaso. Nunca gostei de chocolate e não sei fazer nada na cozinha. Venho da escola do azeite. Toda a família, amigos, primos, eram ligados directa ou indirectamente à produção de azeite. Estava habituado a avaliar o azeite, e era uma guerra a cada ano para saber se o amargo era da oliveira ou se era amargo porque havia folha ou por causa da mosca da azeitona — pode ser amargo natural ou amargo por defeito. Por isso estava treinado nisso. Quando cheguei aqui, gostava da planta de cacau, que pode ser bastante semelhante à oliveira. Não tem nada a ver com o café: café é um arbusto e poda-se de uma maneira, o cacau é uma outra história.

Que semelhanças são essas entre o cacaueiro e uma oliveira?

Um camponês que sabe podar uma oliveira, se estiver à frente de uma planta de cacau, adivinha. É igual.

Comecei a experimentar o cacau que encontrava. E em todo havia uma amargura que não dava dúvidas: era amargura derivada de defeito. Por exemplo, a rúcula: tem um amargo natural; se a esquecer durante uma semana no frigorífico, a folha começa a escurecer e traz uma outra amargura que não tem nada a ver com a amargura natural da rúcula, é derivada de um defeito de armazenamento.

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Encontrou isso no cacau?

Fiquei verdadeiramente admirado. Queria ter uma ideia mais ampla, experimentar mais cacau, e fiz uma coisa muito simples: pedi a um amigo na Itália que contactasse os maiores grossistas para que enviassem amostras dos melhores lotes de cacau que tivessem. “Não me interessa o preço, pago as amostras, o transporte, mas quero o top da qualidade.” Contactaram dois grossistas em Itália e França, um deles o grossista de cacau mais conhecido do mundo. Recebi as amostras dos melhores lotes que havia no mercado, do cacau comercial, que é cotado em bolsa. Em todas as favas que experimentámos havia esta amargura que eu não tinha dúvidas de que era um defeito. Era bastante incrível. O defeito sente-se.

Mesmo não sendo um conhecedor?

Eu nunca tinha comido cacau nem gostava de chocolate. Sente-se o defeito. É naturalíssimo! O que é incrível é que ninguém tenha dito isto antes.

Logo, não deve ser tão evidente quanto isso.

As pessoas têm um enorme cromossoma da ovelha! Impressionante! Eu dizer, há 20 anos, “desculpa, mas este amargo é um defeito”, não foi fácil. Mas disse. E provei-o. Criei este laboratório para descobrir a origem do defeito do cacau, para evitar o seu aparecimento: analisar todas as amostras que preparavam na plantação. No final, consegui o percurso certo, não para eliminar os defeitos mas para os evitar, o que é bem diferente. Porque eliminar o defeito, como fazem na indústria, não é um procedimento selectivo: elimina tudo, perfume, defeito, vida, fica uma pasta que tem um sabor que, se não se juntar baunilha ou qualquer coisa, não sabe rigorosamente a nada. Porque é que eu tenho tanto sucesso em todo o mundo? Faço conferências na Califórnia, Suiça, Alemanha, Bélgica, porquê?

Está a passar esse conhecimento a outras pessoas aqui?

A formação é a base do meu trabalho. Formamos toda a gente porque para chegar a esta qualidade é preciso um trabalho de equipa. Estão envolvidas 250 pessoas — duas plantações, um escritório, um laboratório. A formação é sempre a base. Cada pessoa tem que conhecer muito bem o seu trabalho e sentir que está participando no resultado, ter orgulho do trabalho que faz.

Voltanto atrás: quando diz que não gostava de chocolate...

E tinha razão. Tinha razão. Sempre gostei de confeitaria, mas a confeitaria está para o chocolate como a sangria está para o vinho. Não se pode julgar um vinho bebendo uma sangria. Não posso julgar um chocolate comendo um bombom.

E como foi dedicar-se a uma coisa de que não gostava à partida?

Um dos ensaios que fazíamos no laboratório era torrar, descascar e moer. Enquanto melhorávamos a técnica, este cacau descascado e moído saía sempre com mais perfume. E eu experimentava o cacau: chupava a mucilagem fresca, na cápsula. Outra coisa curiosa: sou o único no mundo a ter feito aguardente de polpa de cacau.

Não existia?

Não, e porquê? Porque é um subproduto. Quer experimentar? São 73 graus! É robusta!

[Sai para ir buscar uma garrafa de plástico de litro e meio com um líquido transparente e alguns copos]. Ponho pouco porque é uma bomba! Mostro como se faz: ponho uma gota na boca, e depois mastiga-se de maneira a diluir-se com a saliva. Porque se vai directo para a garganta fica sem respiração. Sente como é redondo? Como é profundo? Há grapa de 50 graus que arranha; este é veludo. A polpa, a goma do cacau, que as pessoas comiam fresca no momento da colheita: eu fiquei tão apaixonado por este perfume que quis capturá-lo.

Comercializa?

Não. O nosso distribuidor em Itália já deixou de insistir. Faço macerar passas de uva aqui dentro e depois de quatro meses ponho no chocolate. É muito bom e além disso é o único chocolate do mundo com o seu próprio álcool. Fazemos 30, 40 litros por ano. Quando a colheita é muito distribuída no tempo não dá para destilar porque é tão pouco que fermenta mal.

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A baunilha também só será usada no chocolate?

Sim, porque apanho a baunilha madura e faço um concentrado com chocolate. Basta. Falaram-me tanto de chocolate cru. Pedi a alguém para me mandar todo o chocolate cru que encontrasse no mercado, para experimentar. [Levanta-se novamente e traz uma caixa de cartão com várias tabletes] Tenho aqui porcarias indignas. Coisas vergonhosas. A coisa mais comestível não sabe a nada. Experimente primeiro o meu: não gosto de moer o cacau fino, porque matam-se os perfumes. É como a salsa. Começa a moer, o perfume aumenta, continua a moer, o perfume começa a morrer. Tem uma curva. Este é cacau cru. [Depois de se provar um dos chocolates que mandou vir:] Fica um amargo pegado na garganta, que para limpar é preciso um desentupidor. Agora a boca está disfarçada com o açúcar, mel de não sei o quê... A ausência de açúcar não é sinónimo de amargura.

Chamou alguém que entendesse de chocolate para trabalhar consigo?

Escuta uma coisa, se alguém entendesse de chocolate diria: “Isto não bate certo, porque este amargo não é natural”. Eu faço chocolate como na Toscana se faz o azeite. Se até hoje não havia ninguém a dizer que o amargo é um defeito do chocolate... Aliás, todos diziam que um bom chocolate tem de ser amargo. Ia chamar quem? Quando quis destilar a polpa do cacau contactei um grande enotécnico e disse-lhe: “Gostaria de destilar a polpa do cacau, mas nunca destilei na vida. Tens tempo de me dar duas ideias? Eu descrevo-te o fruto.” A resposta: “Não precisas de me descrever o fruto, porque fiz uma pesquisa bastante longa para utilizar a goma do cacau e não deu resultado”. Allora!

Enquanto estiver convencido que sou imortal, vou à frente. Não fico sentado a ver a baunilha crescer, faz-se a pimenta, faz-se outra coisa.

Qual era afinal a origem dos defeitos do cacau?

Era uma cadeia de erros, de falta de cuidados, do início ao fim. Começa pela colheita, num momento que ou é tarde ou cedo. Armazenamento: temos um armazém elevado e desumidificado. Como podemos pensar em armazenar um produto com esta humidade que há aqui? Este é um treino constante.

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Inês Gonçalves

Esse rigor...

Rigor! Rigor é a base de tudo. Quando me dizem: “Mesmo assim, presta”. É o início do fim.

Incutir esse rigor nas outras pessoas deve ter exigido muito trabalho também, não?

Muito exemplo. O exemplo é a base. Dizer as coisas e não dar exemplo, mais vale calar, poupar energia, porque o resultado vai ser o mesmo. 

Os outros continuam a trabalhar como sempre trabalharam ou já mudaram por sua causa?

As pessoas não gostam do meu segredo: cuidado, rigor, trabalho e exemplo. As pessoas gostam de segredos menos cansativos. No Zaire era a mesma coisa. O nosso café valia quatro vezes mais que os outros e ninguém o fazia porque era preciso ficar no campo, com as pessoas: tem que se atribuir a tarefa certa, [equilibrar] a qualidade e a quantidade da tarefa. Se não sabemos trabalhar no campo não temos a capacidade de avaliar a tarefa e as coisas não funcionam. É grotesco.

Devia produzir-se mais cacau em São Tomé e Príncipe, ou melhor cacau?

Tentamos que o trabalho no campo progrida na qualidade, mas se o preço do café ou do cacau é uma lotaria, se no fim do ano não compensa, as pessoas abandonam o campo, e quando voltarem já não há uma produção.

O problema do cacau é que tem de ser fermentado e é preciso uma massa [em quantidade suficiente] que dê uma inércia térmica para manter a fermentação. Mas a colheita do cacau não se faz numa semana, é diluída em nove meses. Estamos perto do Equador, não há um pico de produção. Se a colheita der poucos quilos de cacau não dá para fermentar e vai para o lixo. Por isso, temos que nos juntar e eu compro cacau [a outros produtores]. Compro o fruto e faço o resto. Está tudo controlado do início ao fim.

Quanto tempo levou até dizer ‘está perfeito’?

Perfeito, nunca. Melhoramos sempre. O chocolate é feito com um produto vivo. Como o vinho, que cada colheita dá as suas características peculiares.

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