“A anexação ilegal da Crimeia relembrou-nos os tanques soviéticos”

O ministro dos Negócios Estrangeiros da Letónia explica o que representa a ameaça de uma "guerra híbrida" travada pela Rússia para os países europeus.

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"Há um sentimento intenso de cautela" em relação à Rússia, diz o chefe da diplomacia da Letónia Rui Gaudêncio

Há vários meses que a Letónia é um dos países onde estão estacionados militares da NATO, no contexto de uma estratégia de "dissuasão" em resposta àquilo que a União Europeia, e especialmente os antigos Estados da esfera soviética, classificam de "provocação" por parte da Rússia. O ministro dos Negócios Estrangeiros da Letónia, Edgars Rinkevics, fala da ameaça de uma "guerra híbrida" que Moscovo está a travar contra a UE, mas também da necessidade de se manter o diálogo com a Rússia.

Que tipo de receio em relação à Rússia tem hoje a população da Letónia?
Há um sentimento intenso de cautela, não diria pânico nem medo, mas cautela. A anexação ilegal da Crimeia relembrou-nos o que aconteceu à nossa própria independência em 1940, quando os tanques soviéticos invadiram as três capitais, foram organizadas eleições falsas e, de repente, os três Estados bálticos tornaram-se parte da União Soviética. Há algumas semelhanças com a Crimeia: chegaram uns soldados russos – a Rússia durante muito tempo não admitiu que eram soldados seus – e há um referendo realizado duas semanas depois. Houve um sentimento de déjà-vu e de cautela. Há algumas informações de que potenciais provocações militares são muito improváveis. Há sim a possibilidade de uma guerra híbrida, ataques informáticos, campanhas de propaganda – tudo isso são coisas que se estão a desenrolar, através de canais de televisão, pela Internet, redes sociais. Este tipo de batalha contínua pelas mentes das pessoas. Mas não somos os únicos a passar por isso. Sentimos que esta guerra híbrida é parte da nossa vida quotidiana, seja nos países bálticos, seja em França e suspeito que iremos ver as eleições alemãs também afectadas por isso.

Como é que a presença de uma força convencional como a da NATO pode travar esse tipo de guerra híbrida?
A presença do batalhão tem apenas um alvo: as provocações militares. A possibilidade é baixa, mas é baixa por causa dessa presença da NATO nestes quatro países. Isso também envia uma mensagem clara à Rússia de que qualquer tipo de jogo militar não será tolerado. É preciso estar preparado militarmente, mas também é preciso desenhar uma estratégia e implementá-la para travar este tipo de ameaça híbrida. O centro de excelência da NATO em Riga não está apenas centrado em combater a propaganda russa, também se concentra na propaganda do Daesh, por exemplo. Analisam a forma de recrutamento do Daesh na Europa, quais são as mensagens, como se pode combater. A nossa comunidade de valores partilhados está sob ataque de duas forças muito sérias: uma é um actor estatal, a Rússia, que está a tentar alterar o equilíbrio em termos internacionais, e depois há as forças extremistas, como antes a Al-Qaeda e agora o Daesh.

A alienação sentida por parte dos chamados “não-cidadãos” não os pode tornar mais vulneráveis à potencial manipulação russa?
Quando voltámos a ser independentes, em 1991, tínhamos muitas pessoas de várias regiões da União Soviética, que foram enviadas para os países bálticos, numa espécie de tentativa de “colonização”. Houve uma decisão consensual de que não se pode conceder automaticamente cidadania a toda a gente, mesmo que não falem letão, ou que não tenham uma ligação emocional ao país. Foi então criado um mecanismo, que eu diria que é acessível, para todos aqueles que desejem ser verdadeiros cidadãos da Letónia, e que inclui um teste de idioma, e um teste bastante fácil de História e da Constituição. Tínhamos cerca de 700 mil “não-cidadãos” em 1996 e agora temos 280 mil. Os “não-cidadãos” gozam dos mesmos direitos económicos e sociais dos cidadãos, a única diferença é que não podem votar nem ser eleitos, nem ocupar algumas posições diplomáticas, militares e na polícia. Temos tentado encorajar as pessoas a fazerem o teste de cidadania, mas não podemos simplesmente dar a cidadania e depois acreditar que sejam cidadãos leais ao país. Uma das razões porque muitos escolhem não ser cidadãos é muito pragmática e interessante. Como cidadão da Letónia, eu posso viajar livremente sem visto por toda a UE e muitos outros países, à excepção da Rússia. Os “não-cidadãos” podem viajar livremente na UE e também na Rússia, portanto, para muitos, esta espécie de privilégio é um factor decisivo para não fazerem o teste de cidadania. Não acho que este grupo seja mais vulnerável à propaganda russa. É tão vulnerável como a comunidade de falantes de russo. Por exemplo, temos frequentemente letões a ver televisão russa e a concordar com as posições russas, e vice-versa. Há muitos falantes russos que odeiam o que a Rússia está a fazer. Não são grupos monolíticos como os analistas ou os jornalistas por vezes apresentam, é uma combinação.

A Rússia não tem uma estratégia para atrair este tipo de populações?
O objectivo é muito mais abrangente, querem interferir com a forma como pensamos. Eles assumem automaticamente que a maioria dos falantes russos será emocionalmente ligada à Rússia. As mensagens são sobretudo três: a UE é decadente, uma sociedade liberal que está a falhar; a Rússia é o lar do pensamento conservador, e que tudo o que a UE ou os EUA fazem, como as sanções, está a prejudicar as nossas próprias economias. E, depois, há uma mensagem muito específica para todos os falantes de russo: que a Rússia tem o direito divino de proteger não só aqueles que são russos por nascimento, mas os que falam russo. Eu falo russo, portanto também seria objecto de protecção – já decidi que, provavelmente, vou recusar.

Como um dos países da UE que faz fronteira com a Rússia, é possível, a um nível pragmático, cortar totalmente relações com um vizinho desta envergadura?
Temos as nossas diferenças em termos de princípios, em relação à História – sobre 1940, nós consideramos uma ocupação, a Rússia diz que foi a vontade livre dos letões –, temos tensões em relação à comunidade de falantes russos, temos diferenças em relação ao que se passou na Ucrânia. Mas, como em todos os países, temos relações normais no que diz respeito a cooperação entre guardas fronteiriços, continuamos as nossas consultas regulares ao nível dos ministros dos Negócios Estrangeiros. Eu estive em Moscovo em 2015, os nossos responsáveis diplomáticos encontram-se. As relações não estão cortadas, tratamos de algumas questões a um nível regular. E estamos também a tentar defender o diálogo entre a NATO e a Rússia para reduzir tensões. Não creio que seja sensato cortar esse tipo de discussões políticas.

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