O lado B de Caetano com um tempero especial de Cartola

Caetano regressou ao Coliseu do Porto para “apresentar” Teresa Cristina e as suas interpretações de Cartola e pelo meio foi ao seu baú recuperar jóias quase esquecidas. Moral da história: um belo concerto.

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Imagens do concerto de Caetano Veloso com Teresa Cristina Nelson Garrido
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Será possível falar de “restos de colecção” no imponente espólio musical de Caetano Veloso? Dois anos depois de partilhar o palco com Gilberto Gil, o cantor regressou ao Coliseu do Porto na mesma noite de 25 de Abril, agora para se apresentar a sós com o seu violão ou em diferentes relacionamentos com a cantora carioca Teresa Cristina e o espantoso violonista Carlinhos Sete Cordas. Supostamente, o portefólio de canções que escolheu eram segundas linhas para evitar a repetição das “canções relevantes” que interpretou ao lado de Gilberto Gil. Mesmo que a maior parte das suas escolhas não pudesse ser facilmente identificada pela plateia, faz pouco sentido falar em “restos de colecção”. Caetano tem um poder magnetizante sobre o público e até as mais remotas canções da sua carreira, as mais esquecidas e distantes funcionam como um íman que arrebata palmas e emoções.

Não, este não foi o concerto arrebatador de há dois anos, nem o concerto electrizante de 2014, no Porto Primavera Sound, na companhia vibrante da banda que criou Cê – a prova acabada de que o talento criador de Caetano é inextinguível. Foi sim um concerto surpreendente, invocador de memórias quase distantes, versos quase esquecidos e melodias quase apagadas pelo tempo. Se o Tropicalismo esteve lá com, por exemplo Enquanto Seu Lobo Não Vem, de 1968, também lá esteve Abraçaço de 2012. Estiveram também Um Índio ou temas ainda mais conhecidos como Cucurrucucu Paloma (regressado em força à actualidade na banda sonora de Moonlight), Menino do Rio ou Força Entranha. Mas, no geral, a maior parte do alinhamento suscitou à plateia uma relativa estranheza, como se fosse um Caetano original a pisar o palco.

O que pode ter faltado em comunicação, sobrou em surpresa e redescoberta. Em Luz do Sol, que abriu a sua participação. Ou em Reconvexo, esse manifesto de ligação ao Recôncavo da Bahia. Porque, por desconhecidas ou estranhas que sejam, as canções de Caetano têm sempre o desenho esguio das suas palavras, o timbre, ora sibilante, ora trémulo, ora firme da sua voz e a complexidade da sua harmonia. Se as palmas explodiram com particular vigor apenas em canções como O Leãozinho ou em A Luz de Tieta, a verdade é que se sentiram com força e sinceridade ao longo do alinhamento. Como se Caetano fosse um senador da música a quem todas as vénias são devidas, mesmo quando serve melodias sem correspondência na memória dos que o ouvem com devoção.

Também por isso a cantora que apresentou foi alvo de uma simpatia particular. Teresa Cristina pode parecer em disco apenas mais uma voz entre a galáxia infinita de talentos do Rio e do Brasil, mas ao vivo a limpidez firme da sua voz, a sua graça e a sua singeleza ganham contornos especiais. As suas versões do genial Cartola (Angenor de Oliveira, 1908-1980, um dos principais nomes do samba) tornaram-se assim em palco mais graciosas e vibrantes, também por culpa de um violonista extraordinário, Carlinhos Sete Cordas. Sambas-canção como O Mundo é um Moinho, Preciso me Encontrar (celebrizada, entre outros, por Marisa Monte) e em especial As Rosas não Falam encontram na voz de Teresa Cristina um espaço ideal para o reforço da sua dimensão nostálgica dos amores perdidos ou dos destinos desfeitos.

Se o concerto começou com Teresa Cristina e Carlinhos Sete Cordas e decorreu a maior parte do tempo com a luz a iluminar Caetano e o seu violão, o final juntou os três personagens. Os cinco temas que interpretaram em conjunto proporcionaram talvez os melhores momentos do concerto. O som do violão de Carlinhos encheu a sala e a conjugação das vozes de Caetano e Cristina em Tigresa, Como Dois e Dois (de Roberto Carlos), Desde Que o Samba é Samba ou em Odara deram outra espessura à música, como se o talento colectivo fosse maior do que a soma das suas partes. Com o Coliseu rendido no tema final (Qualquer Coisa), com cravos nas lapelas ou atirados para a plateia, com o “Fora Temer” que se ouve em qualquer lugar onde haja mais de dois brasileiros, a noite terminou em grande. Por muito que se veja e ouça Caetano, é impossível acreditar no Déjà Vu. Principalmente quando Caetano vai ao baú e nos prova uma vez mais que é dono e senhor de um dos mais impressionantes espólios da música popular dos séculos XX e XXI.

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