Sião: o turno da noite da poesia portuguesa

Há 30 anos, a antologia Sião, publicada pela Frenesi, vinha agitar as águas da lírica portuguesa, dispensando autores consagrados e mostrando que alguma da melhor poesia sempre fora escrita em prosa.

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Em Fevereiro de 1987, os poetas Al Berto, Paulo da Costa Domingos e Rui Baião publicavam na Frenesi, a editora dirigida pelo segundo, a antologia Sião. Reunindo textos de 70 autores – de Antero de Quental (1842-1891) e Cesário Verde (1855-1886) a Adília Lopes e Fernando Luís Sampaio (ambos nascidos em 1960) –, Sião propunha-se arejar o cânone da lírica portuguesa, dispensando uma ilustre galeria de antologiados crónicos, mas vinha também mostrar que era possível, escavando nos sítios certos, encontrar uma tradição nacional para a poesia que alguns novos poetas, incluindo os três organizadores, vinham praticando: uma poesia urbana, impura, desencantada, violenta, nocturna, às vezes alucinada, amiúde mordaz, tão devedora da tradição literária como da música punk ou do cinema.

Numa das raras recensões positivas que o volume suscitou na imprensa da época, o poeta e jornalista António Cabrita, ele próprio antologiado, observava que a poesia desses primeiros sete anos da década de 1980 – à qual a antologia concedera uma presença deliberadamente desproporcionada – não vinha sendo lida nem discutida, como se os seus autores “pertencessem a um ‘turno da noite’”. A expressão descrevia bem tão bem o clima geral da antologia, que acabou por ficar consagrada, a ponto de a ensaísta italiana Virginiaclaro Caporali, autora de uma improvável tese de doutoramento sobre Sião, ter dado a um seu livro recente o título Il Turno di Notte. La poesia portoghese nel secondo Novecento.

Com uma notável capa do pintor Pedro Calapez, de que se pode ver uma prova nesta exposição, e uma tiragem de 1200 exemplares, Sião abria com um assertivo prólogo de Alexandre Melo, que desfazia, logo a abrir, quaisquer equívocos. Alertando para a evidência de que “uma antologia se define pelo que inclui e pelo que exclui”, o crítico de arte concluía: “Portanto, nesta antologia não falta nenhum poeta, o que não quer dizer que a um ou outro poeta não passe a faltar esta antologia”.

A muitos leitores da época, é provável que o final da frase tenha soado a bravata, até porque Sião não parecia nada uma antologia com aspirações canónicas. Desde logo, parecia breve de mais, nas suas 220 páginas, para abarcar um século de produção lírica. Depois, as apresentações dos autores quase não citavam títulos ou datas, e ainda incluíam apontamentos tão desconcertantes como o de afiançar que Herberto Helder "habita o centro das matas incendiadas e só se desloca de helicópetro", ou o de terminar a nota dedicada a Pessoa com esta constatação: "Como astrólogo foi um desastre". E também não era fácil levar demasiado a sério uma selecção que dispensava Gomes Leal, Ruy Cinatti ou Fiama Hasse Pais Brandão para incluir um número considerável dos tais poetas do “turno da noite”, alguns deles nem sequer publicados em livro, como Ana Curado, nascida em 1944 (que nem nasceu nesse ano nem se chama assim), José Mira (n.1954) ou António S. Ribeiro (n.1956), para citar apenas alguns exemplos.

No entanto, desde as Líricas Portuguesas organizadas por Jorge de Sena, e descontando o caso singular de Edoi Lelia Doura, para a qual Herberto Helder convocou apenas dez poetas nascidos no século XX, é bem possível que nenhuma outra antologia de poesia portuguesa tenha acabado por ser tão prestigiante para os contemporâneos nela incluídos. E Sião, há que reconhecê-lo, envelheceu surpreendentemente bem. Veja-se como seriam hoje encaradas com outra naturalidade certas idiossincrasias ainda francamente exóticas em 1987, como a de incluir prosadores, de Raul Brandão a Manuel de Lima e Maria Gabriela Llansol, ou a de escolher apenas textos em prosa de poetas como Ângelo de Lima, Natália Correia ou Herberto Helder. Mas também convém assinalar que, nesse e noutros aspectos, Edoi Lelia Doura, publicada dois anos antes, abriu caminho a Sião, mesmo que as duas antologias não pareçam muito comparáveis.  

Apesar de quase toda a crítica de imprensa ter discutido essencialmente as presenças, e sobretudo as ausências, do controverso elenco de autores de Sião, o carisma da antologia até resultará mais dos textos seleccionados de cada poeta, escolhas que são quase sempre inesperadas, mas que vão desenhando fios condutores e intencionalidades claramente legíveis. Por isso mesmo, o que mais irritou Paulo da Costa Domingos na recepção geral a Sião foi ver quase toda a crítica passar ao lado do bastante ostensivo programa da antologia: “O que estava em jogo era fazer desaparecer do cânone, para os novos poetas que começavam a escrever, toda essa poesia agrária, os grandes bucolismos, aquelas coisas no estilo ‘menino da lágrima’ de que a poesia portuguesa estava cheia, e apontar outros caminhos”.

"Em 1987, era tudo faustoso e alegre, e havia muito dinheiro para gostar, mas nós achávamos que o país não era isso”, diz Paulo da Costa Domingos. “Era um país urbano, mas muito deprimido, muito ferido, com cicatrizes que estavam outra vez a abrir, um país onde havia desconforto e miséria, e se sentia o desgosto pela política, a falta da revolução prometida”.

Sião não teve uma recepção entusiástica nem foi propriamente um fenómeno de vendas, mas o poeta e editor está convencido de que a antologia que preparou com Rui Baião e Al Berto (que já começava a ser um poeta de culto e lançaria, nesse mesmo ano, com o título O Medo, a primeira edição da sua poesia reunida) teve mais influência do que se possa pensar. Depois de Sião, “a relação da poesia com a banalidade do quotidiano tornou-se muito mais generalizada e sentiu-se também o recuo de um certo obscurantismo abstractizante em favor de uma linguagem mais clara”, observa Paulo Costa do Domingos. 

Trinta anos depois, é provável que não fizesse hoje exactamente as mesmas escolhas, mas continua a não ver em Sião “nenhuma omissão assim tão gritante”. Confirma que o concretismo foi deliberadamente deixado de fora, defende que Carlos de Oliveira pode representar “todos os neo-realistas” ausentes, e usa o mesmo raciocínio para justificar as ausências de Fiama ou Gastão Cruz, argumentando que basta Luiza Neto Jorge para assegurar a presença da Poesia 61. Já o surrealismo, diz, “tem uma boa representação, porque cada um deles tinha uma especificidade tão forte, que era impossível pôr um por substituição de todos os outros”.

E Gomes Leal? “Podia estar, mas não era o místico, tinha de ser o revolucionário republicano, o panfletário”. Ruy Cinatti? “Esse foi uma opção ideológica; compreendo e defendo que ele hoje tenha de ser revalorizado doutra maneira, mas naquela altura ainda era, para nós, o indivíduo de crucifixo ao pescoço que distribuía poemas de elogio ao Jaime Neves nos cafés da Baixa”.

Quem também não está na antologia, por razões óbvias, são os seus três organizadores, embora a obra que qualquer deles já publicara em 1987 justificasse a inclusão. E até estiveram para ser cooptados numa versão castelhana de Sião, a organizar por Enrique Trogal. Mas o projecto acabou por ir por água abaixo, explica Paulo da Costa Domingos, “porque se verificou que ele queria era usar o material, mudar o título e dizer que era uma antologia dele”. Na publicação que acompanha esta exposição, e que dá pelo sintomático título de Sião, doc. interno, transcreve-se a correspondência então travada com Trogal, que constitui um saboroso exemplo da proverbial truculência do poeta e editor português, que não esconde o seu júbilo com o fracasso nas negociações. “Era mesmo isso que aqui pretendíamos: que os Filipes largassem de vez os costados dos portugueses”, escreve a um indignadíssimo e atónito Trogal, que, para mais do que provável gozo do seu interlocutor, responde lamentando insultos tão “rançosos” e “old fashioned”. 

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