A morte anunciada dos socialistas franceses

A França é hoje o lugar geométrico das esperanças e dos temores dos europeus. Faltam os resultados.

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1. No meio das dramáticas incertezas que marcam as presidenciais francesas, destaca-se uma (quase) certeza: o Partido Socialista já terá morrido em combate. O seu candidato, Benoît Hamon, foi “eliminado” da primeira volta. Hoje, como escrevia recentemente o Monde, o seu nome só é mencionado quando se discute a divisões dos seus votos (7 a 10%) entre Emmanuel Macron e Jean-Luc Mélenchon. É preciso recuar até às primárias socialistas de Janeiro para encontrar as causas deste desastre.

Manuel Valls, primeiro-ministro de François Hollande desde 2014, era o rosto da ala mais moderada e reformista dos socialistas franceses. Com o Presidente a sair de cena sem sequer tentar um segundo mandato, apostou tudo na vitória nas primárias. Perdeu-as para Hamon, o novo rosto da ala radical do PS, com uma passagem fugaz pelo Governo do qual saiu quando Hollande virou ao centro, para um programa mais amigo das empresas e mais conforme aos ditames europeus. Alinhou com os deputados contestatários da bancada socialista na Assembleia Nacional para fazer a vida negra ao Governo. Convém recordar que o mesmo aconteceu ao outro grande partido da V República, quando François Fillon ganhou as “primárias” dos Republicanos, contra todas as sondagens. Manuel Valls e Alain Juppé (dado como vencedor até perder) seriam a continuidade, mesmo que abalada para força eleitoral cada vez maior de Marine Le Pen. A corrida mudou de natureza. O PS ficou exposto ao assalto vindo de fora, à esquerda e à direita. Mélenchon recusou-se a desistir a favor dele: o seu objectivo é, precisamente, destruir o PS. Macron decidiu correr por fora, o que se revelou uma boa estratégia. “Saiu a tempo da casa assombrada”, diz Serge Raffy no Nouvel Obs. O candidato do PS não conseguiu libertar-se desta tenaz, sofrendo a humilhante derrota de nem sequer fazer parte dos favoritos.

2. O que há de novo na história de um partido que já venceu outras batalhas pela existência? Até hoje, como na maioria dos partidos de centro-esquerda, foi sempre possível encontrar alguém capaz de conciliar as duas grandes tendências que viviam sobre a mesma bandeira: uma ala esquerda que gosta mais de protestar do que governar; uma ala direita mais interessada em governar do que brandir os grandes princípios do socialismo e mais capaz de se adaptar às reviravoltas do mundo e da sociedade. Ao longo da sua história pós-Segunda Guerra, François Mitterrand, Lionel Jospin e até Hollande conseguiram conciliar estas duas tendências para poder governar a França. Desta vez, isso não aconteceu, alimentando uma sucessão de “traições” que são sempre mais violentas se acontecem em família. Macron “traiu” Hollande e Valls, ao abandonar o Governo para criar o seu próprio movimento – En Marche! – e lançar a sua candidatura. Valls “traiu” Hamon, quando anunciou que votaria em Macron, porque “o país está antes do partido”. Acusam-no de ter dado o golpe final no PS. Mas o anterior primeiro-ministro ainda pode tentar a sorte. “Estará em condições de recuperar o PS para reconstruir a ala social-liberal da maioria centrista de Macron?”, pergunta Geoffroy Clavel no HuffPost. Corre o risco de ter pela frente um partido ainda mais radicalizada pela derrota.

Se for este o cenário, a ruptura será praticamente inevitável. Valls estaria preparado para ela. Conseguiu enfurecer muitos socialistas, quando dizia que o PS devia mudar de nome, no mesmo sentido do que aconteceu ao centro-esquerda italiano com o Partido Democrata. Avisou várias vezes que os partidos também morrem se não souberem adaptar-se às transformações da sociedade. É, como dizem os franceses, um social-liberal, uma designação que também encaixa em Macron. De resto, a crise que o PS atravessa radica num sentimento generalizado de revolta contra as elites, de incompreensão da globalização ou da perda de influência da França na Europa. Os eleitores deixaram de saber o que pensar. Há 15 anos, os operários que viram as suas indústrias desaparecer voaram directamente do Partido Comunista para a Frente Nacional. Hoje, os estudos de opinião demonstram que há vasos comunicantes entre a Frente Nacional de Le Pen e a Frente de Esquerda de Mélenchon. Os partidos do sistema, PS e Republicanos, navegam à vista

3. As linhas de fractura que marcaram esta campanha presidencial também não favoreceram o candidato socialista. Uma França aberta ao mundo ou fechada nas suas fronteiras? Uma França que continua a apostar na Europa ou que rejeita a integração europeia? Uma França que defende a relação Paris-Berlim, enquanto trave-mestra da União Europeia desde o pós-guerra ou que aponta o dedo à Alemanha, responsabilizando-a pelos seus desaires? Uma França que abre os braços aos refugiados, como fez tantas vezes na sua História, ou que lhes fecha as portas, procurando numa identidade longínqua, cristã e europeia, o reduto para fazer frente ao mundo exterior?

Há duas respostas claras a cada uma delas, as de Le Pen e as de Macron. Não se tocam nem se confundem. E há, depois, as respostas ambíguas, que procuram navegar entre as duas visões distintas do futuro da França. Gilles Finchelstein, da Fundação Jean-Jaurès, escreve que Hamon não tinha espaço junto dos simpatizantes socialistas “entre um voto mais eficaz em Macron ou um voto mais simbólico em Mélenchon”. Algumas das suas propostas entram em choque com a realidade. A ideia de um rendimento universal (600 euros) para cada cidadão de forma a combater as desigualdades crescentes pode ser intelectualmente tentadora, mas não tem condições para vingar num futuro previsível. Defendeu uma Europa “reformada” de contornos pouco claros. Não podia dizer aquilo que Mélenchon resumiu numa frase: ou a Europa muda ou a França sai. Tem adeptos noutros movimentos da esquerda radical, como o Bloco português, mas também noutros partidos da família socialista. Jeremy Corbyn não vai combater o "Brexit", do qual é um simpatizante envergonhado, apenas exige que os direitos sociais europeus se mantenham no Reino Unido. Com a escolha de Hamon, os socialistas condenaram-se a si próprios. É essa a mensagem que também vem de outras capitais europeias. Em Berlim, a divisão entre as grandes famílias políticas europeias desapareceu. Sigmar Gabriel, até recentemente o líder do SPD, nem sequer escondeu a sua preferência por Macron. Wolfgang Schaüble “recomendou” o voto no mesmo candidato independente cujas ideias sobre a reforma da Zona Euro contrariam bastante as suas.

4. Finalmente, o último sinal da morte anunciada do PS veio de fora da Europa. Donald Trump não resistiu a dizer que Le Pen era a candidata “mais forte” para os problemas da França. Obama falou ao telefone com Macron para lhe desejar toda a sorte do mundo. A França é hoje o lugar geométrico das esperanças e dos temores dos europeus. Faltam os resultados.

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