Advogados deputados vão ser impedidos de litigar com entidades públicas

Pedro Delgado Alves, o coordenador do PS na Comissão da Transparência, diz em entrevista que existe “um consenso social e político muito claro” sobre incompatibilidades entre o exercício da advocacia e o mandato parlamentar.

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Pedro Delgado Alves, coordenador do PS na Comissão da Transparência Rui Gaudêncio

Seis meses depois da última reunião plena e aberta, a Comissão Eventual para a Transparência no Exercício de Funções Públicas começa agora a debater propostas concretas do novo pacote legislativo que quer ter pronto até ao Verão. Em entrevista ao PÚBLICO, Pedro Delgado Alves, o coordenador do PS nesta comissão, levanta o véu sobre o que vir a tornar-se lei. Mais incompatibilidades e impedimentos, sobretudo para os deputados que exercem funções jurídicas, um Código de Conduta para impedir ofertas aos parlamentares acima dos 150 euros, uma nova Entidade Fiscalizadora da Transparência e uma nova forma de criminalizar o enriquecimento injustificado são ideias que vão agora ser trabalhadas ao pormenor.

A Comissão vai agora começar a trabalhar sobre o anteprojecto de lei sobre o Controle Público e Regime Sancionatório dos Titulares de Cargos Políticos e Altos Cargos Públicos. Quer explicar do que se trata?
Com este diploma pretende-se arrumar várias matérias que estavam dispersas em diferentes diplomas, tenta concentrá-las ao máximo em dois ou três, é por aí que vamos começar. Em primeiro lugar, em torno das incompatibilidades e impedimentos, as matérias de registos e declarações de interesses e património e a forma de os controlar e validar, e depois a antiga tentativa de criminalizar o enriquecimento ilícito, que como tal é inconstitucional, mas que com a nossa proposta, com uma estrutura que não inverte o ónus da prova, pode alcançar-se o mesmo objectivo.

Todos estes objectivos poderão ficar sob a alçada da Comissão Fiscalizadora da Transparência que parece estar já consensualizada, ou não?
Não, isso é matéria que ainda vai ser discutida. O único consenso que existe é concluir que o modelo que existe é insuficiente, quer em função dos meios, quer quanto à capacidade e clareza de quem é que tem essas competências. Agora, o perfil exacto de onde e com que meios se vai criar essa estrutura de acompanhamento, ainda estamos a discutir. A tendência é criá-la na alçada do Tribunal Constitucional (TC), mas ao mesmo tempo temos o TC algo receoso, devido aos meios com que tem estado a funcionar. Tem de se ver até que ponto há essa capacidade e com que meios se poderia fazer.

Seria um upgrade da Entidade das Contas e Financiamento dos Partidos?
A matéria é suficientemente distinta da Entidade, cujo objecto é o financiamento dos partidos e das campanhas. Aqui trata-se de um objecto bastante diferente: estamos a falar de titulares de cargos públicos, que não se devem confundir com os partidos, e por outro lado o leque e o âmbito é matéria que iremos discutir, mas pode abranger matérias que não têm nada a ver com actividade politica. Estamos a falar de titulares de cargos políticos mas também de outros que o não são, como dirigentes da Administração Pública ou magistrados.

Na última reunião, falou na necessidade de esclarecer limites para o exercício de cargos políticos por advogados e sócios de sociedades de advogados. Quer esclarecer o ponto de vista do PS?
A exclusividade só é defendida pelo Bloco de Esquerda, os restantes partidos preferem apertar a malha das incompatibilidades e impedimentos, nomeadamente no exercício da função parlamentar. Na função governativa e de Presidente da República há uma regra de exclusividade que faz sentido. O que propomos é que qualquer tipo de actividade de representação ou litigância contra ou a favor do Estado ou de qualquer entidade pública, seja a título individual ou através de sociedade de advogados, não deve ser possível para quem está como deputado.

Em parte este impedimento já está previsto na lei actual…
Não está. A lei em vigor não exclui muitos destes casos, apenas se circunscreve a alguns tipo de foros, a algumas entidades e à litigância contra o Estado, deixando de fora muitos casos e muitas entidades públicas que podem ser defendidas ou ter a litigar contra elas advogados que são deputados. Por isso é uma verdadeira alteração da lei. A opção que tomamos é no sentido de clarificar o regime das sociedades, dizendo que não é possível fazê-lo individualmente ou através de sociedade, e impedir não apenas o mandato judicial, mas também actividades conexas como a consultadoria ou a produção de pareceres. Muitas vezes estas actividades têm um peso e um interesse tão grande ou maior do que a representação judicial.

Seja contra ou a favor do Estado?
Sim. Se temos um litígio que envolve uma entidade pública, não deve haver um deputado a representar nenhuma das partes.

E como é que pode ser feita a fiscalização da participação do deputado nas sociedades de advogados?
Esse é um aspecto em que, na subcomissão de Ética, detectamos que a lei precisa de afinamentos técnicos. Terá de passar por um modelo de transparência que passará por pedir a identificação de quais as sociedades em que o advogado tem participação, para a partir daí se ter como consequência a inibição dessa participação, o que pode levar a que uma pessoa deixe de poder exercer a função. Neste contexto, a profissão jurídica, que lida muito com a aplicação da lei e com uma interacção com o exercício de funções que se prendem com o interesse público, essa delimitação tem um consenso social e político muito claro. Em relação a ela temos muito poucas dúvidas. Depois haverá outros aspectos de incompatibilidades e impedimentos em que uns partidos põem mais umas coisas ou outras, mas são questões de pormenor.

O PS sempre vai apresentar uma proposta de regulamentação do lobbying?
Sim. Quer em função dos trabalhos que estamos a fazer na Comissão, quer como balanço da conferência [de Setembro], estamos a preparar uma proposta, mas que deverá ficar para a última fase dos trabalhos da comissão.

A Comissão esteve a trabalhar durante seis meses em regime de grupo de trabalho, apenas com os membros da mesa e os coordenadores, o que motivou o protesto de um deputado da bancada do PS. O que é que estiveram a fazer?
A sistematização das várias propostas existentes, o que só se concluiu na 13ª e última destas reuniões. Houve uma formatação inicial dos projectos, que visava arrumar as várias iniciativas em diplomas para ser mais fácil a leitura, e isso não ficou concluído senão na semana passada. O que se esteve a fazer foi um trabalho essencialmente técnico e legístico. E a figura da mesa e coordenadores serve para isso. A discussão política começa agora.

Mas pode dizer com verdade que não houve trabalho de discussão política nesta fase?
Posso, o que estivemos a fazer foi um trabalho de sistematização, de definição de que tipo de diploma se funde onde, se vale a pena continuar a ter um regime autónomo de incompatibilidades e impedimentos ou se deveríamos ter um regime geral e muitos especiais, até que ponto se autonomizaria a eventual nova entidade num diploma próprio ou ficaria num destes, se se mexeria ou não na matéria relativa aos crimes de responsabilidade, sempre numa perspectiva de saber onde é que as propostas se encaixam e onde é que vão funcionar nesta grelha. O grande trabalho da discussão das propostas começa agora, primeiro com a apresentação genérica e depois com debates temáticos sobre cada matéria.

O tempo escoa. Acha que é possível terminar este trabalho nesta sessão legislativa?
Acho que sim. O facto de não ter havido comissão durante muito tempo não significa que os partidos não tenham posições já muito solidificadas em relação a muitas destas matérias, alguns partidos já fizeram propostas de alteração aos seus textos por vontade de aproximação. O calendário é viável, acredito que em finais de Julho podemos ter o pacote novo com algum lastro de aprovação.

Qual é a grande vantagem deste trabalho?
É a primeira vez que se encara, desde há muitos anos, este problema de forma sistemática. Foram sendo feitas, ao longo dos anos, intervenções avulsas, muitas vezes motivadas pela ocorrência de um determinado problema que apareceu na Comissão de Ética, mexia-se aqui ou acolá e muitas vezes isso resultava em confusão, cacofonia, desarticulação, regimes gerais que não batiam certo com os especiais. A grande mais valia, a principal – não sei se conseguirá resolver todos os problemas -, é a simplificação e a clareza das normas aplicáveis. O que é uma vantagem para os próprios, para o público em geral e para a transparência do sistema.

Crime de enriquecimento injustificado: é desta?

O PS nunca votou a favor da criminalização do enriquecimento ilícito. Como é que agora vai contornar a declaração de inconstitucionalidade do TC?
Nunca votámos a favor precisamente com base nos argumentos do TC de inversão do ónus da prova. A proposta que agora apresentamos e que já tínhamos defendido parece-nos conforme à Constituição – e as audições realizadas confirmam-no – passam por outro modelo. A partir das declarações de rendimento e património, fazer aí um escrutínio em relação a quem, dolosamente, ou não entregou quando notificado, ou omitiu elementos ou prestou falsas declarações. Aqui sim temos um ilícito em sede de obrigações declarativas, que não inverte o ónus da prova, que abre um caminho para a criminalizar uma conduta quando se descobre que alguém deixou dolosamente de identificar património.

A partir do crime de desobediência qualificada?
Não. Será um tipo de crime próprio: criar uma realidade que tem a ver com o cumprimento das obrigações declarativas, que são a chave para a transparência e controlo da evolução do rendimento e património. Adicionalmente também temos um caminho fiscal: quando aparece um património não identificado, cuja proveniência não está identificada, ele é tributável a uma percentagem significativamente elevada, punitiva, precisamente por não ser identificado.

Se as declarações de rendimentos, património e interesses ficarem todas disponibilizadas no sítio de uma só entidade, poderá então haver uma maior protecção de dados pessoais?
Há duas coisas: o facto de se criar uma entidade específica não deve desonerar o órgão que tem esses titulares a ter essa disponibilidade. A informação pode estar nos dois sítios para poder ser consultado. Quanto ao conteúdo, há coisas que hoje já estão na internet, e que já corresponde a essa triagem de dados pessoais. Em relação ao património, ele não é disponibilizado hoje online e, aí, o que tem de se assegurar são matérias que estão para lá do indispensável escrutínio público e já entram na esfera da reserva da vida privada, do próprio ou de terceiros.

Mas não há o risco de se tornar estas declarações menos públicas?
Há zonas que não faz sentido serem abertas, como a morada de uma pessoa, dados pessoais e relativos a familiares. Mas estamos a falar da publicitação e da disponibilização de dados online e não as relativas à fiscalização. O escrutínio não é posto em causa.

O Código de Conduta dos deputados será um diploma à parte?     
Sim, à partida será uma resolução da Assembleia da República. O objectivo é criarem-se mecanismos adicionais de auto-vinculação, que pode funcionar como um mecanismo interpretativo adicional, e portanto será um diploma complementar que deverá ficar para o final dos trabalhos, depois de definido o que é que fica na lei. As boas práticas e o Código de Conduta ficaria para o final.

Mas há consenso sobre a matéria?
Sim, a discussão é mais sobre o que é que se justifica ficar na lei e o que é que pode ficar apenas na autovinculação. O CDS e o BE, em relação às ofertas, defendem que faça parte da lei, mas também pode ser incluído no Código de Conduta, como o Governo fez. As duas hipóteses são viáveis.

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