São Pedro da Cova, a revolução e o cinema, 40 anos depois

Esta sexta-feira é apresentado Do Carvão Aos Resíduos, regresso do realizador Rui Simões à na vila mineira, 40 anos depois de aqui ter filmado um povo em revolução.

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Fotografia da Rodagem de São Pedro da Cova, em 1976 DR/Rui Simões
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Fotografia da Rodagem de São Pedro da Cova, em 1976 DR/Rui Simões
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Fotografia da Rodagem de São Pedro da Cova, em 1976 DR/Rui Simões
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Rui Simões, à esquerda, com o actor Manuel Martins, que participou no filme DR/Rui Simões
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Fotografia da Rodagem de São Pedro da Cova, em 1976 DR/Rui Simões
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Fotografia da Rodagem de São Pedro da Cova, em 1976 DR/Rui Simões
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Cartaz da estreia do filme, em São Pedro da Cova DR/Rui Simões
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Rui Simões descobriu material sobre o filme, no seu arquivo Rui Gaudêncio
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Serafim Gesta "Mazola", autor de textos e participante no filme de 76 Paulo Pimenta
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A exposição de fotografia sobre o filme de 76 encerra este sábado, no Museu Mineiro Paulo Pimenta
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A exposição de fotografia sobre o filme de 76 encerra este sábado, no Museu Mineiro Paulo Pimenta

Antigamente era a mina. Agora, é cá fora. Assim cantavam Zé Mário Branco e o Grupo de Acção Cultural em 1975, na letra que elevou ao estatuto de canção a revolta que, a 22 de Maio de 1975 redundou na tomada das instalações das antigas minas de São Pedro da Cova e à criação do Centro Revolucionário Mineiro (CRM). Um realizador, Rui Simões, acompanhou de perto este PREC particular, e um ano depois fixou em três pequenos filmes esse período em que a esperança de dias melhores, já não movida a carvão, se alimentava da militância de muitos. Quatro décadas passadas, o autor de O Bom Povo Português reabriu esse capítulo da sua filmografia e voltou a gravar na vila que, há uma década e meia, vem sendo falada por um atentado ambiental.

Um homem cava um campo, com uma enxada, silencioso no seu esforço monótono até que o ferro, batendo numa superfície negra e dura, o põe a gritar, até ao êxtase: "Carvão! Carvão!" Ali por 1793, quem sabe se assim desta forma - ficcionada por Rui Simões, para abrir o seu filme São Pedro da Cova - esta vila do Concelho de Gondomar mudou de rumo. Durante os 200 anos seguintes, a sua história escreveu-se nos túneis das minas, lugar de trabalho árduo e de revolta, e gerador, como poucos espaços outros, de uma identidade que perdurou para lá do fim da exploração deste mineral, há quase meio século.

Do Carvão aos Resíduos - os resíduos perigosos de São Pedro da Cova, de que muitos já terão ouvido falar - fecha uma tetralogia de Rui Simões em torno da antiga vila mineira do concelho de Gondomar. Lá para Maio, quem sabe a tempo de mais um aniversário da revolta que deu origem ao CRM, deve ser editado um DVD que reunirá as três primeiras obras - Museu, O que a Mina Deixou, e Para Além da Mina, reunidos sob o título genérico São Pedro da Cova, com pouco mais de 40 minutos no total - e o novo trabalho, que marca o reencontro do realizador com alguns dos participantes nos eventos e no filme de 1976, que lhe valeria, em 77, uma presença na selecção oficial do Festival de Cinema de Berlim.

Quando Simões chegou a S. Pedro da Cova pela primeira vez, em 1975, já o CRM tomara conta das instalações das minas, fechadas desde 70, e do dia-a-dia desta comunidade, desenvolvendo obra social, alfabetizando adultos, acarinhando o associativismo, construindo casas com organizações de moradores e apoiado num gabinete do SAAL (Serviço Ambulatório de Apoio Local). Ele próprio, que realizara pouco antes Deus, Pátria e Autoridade, participou nesse esforço, dando formação na área da fotografia a habitantes da vila, numa convivência que haveria, meses depois, de levar à realização do filme sobre esta vila às portas do Porto. Até este sábado, no Museu Mineiro, está patente uma exposição com fotografias feitas pelo realizador durante a rodagem, às quais se juntam outras - de making of, nas quais se vê a equipa de filmagem -  feitas precisamente por alguns desses formandos.  

Quando um miúdo visitou Rui Simões

São Pedro da Cova, o filme, é uma ode ao espírito de resistência daquelas pessoas que, perante o realizador, “encenaram”, para este documentário ficcionado, a imagem que de si pretendiam dar. E apesar de tudo o que as minas lhes tinham tirado - saúde, entes queridos, mortos em múltiplos acidentes, ou a possibilidade de um salário digno - o filme mostra-nos uma comunidade apostada em preservar a memória possível daqueles dias que pareciam longínquos, tal o estado de ruína em que foram deixadas pelos antigos donos as instalações da companhia.  Mas, doentes, despedidos com metade da indemnização a que teriam direito, e obrigados, desde 70, a pagar renda pelas casas que pertenciam à empresa que os abandonara à sua sorte; mesmo que quisessem, aquelas pessoas não podiam esquecer.

“Talvez esse esforço de preservação desse património se explique também por ele ser uma memória da capacidade de resistência, de luta, e por estar profundamente associado à identidade local”, admite o presidente da Junta, autarca comunista numa vila em que o PCP se entranhou, galerias dentro, desde a década de 50, tornando-se, em democracia, força dominante no espectro político da freguesia. Daniel Vieira, que apesar de ter nascido muito depois desses tempos, fez deles objecto de estudo, no mestrado, tem centrado muita da actividade do órgão a que preside nesse esforço de manter viva a identidade mineira do lugar. E foi ele, na verdade, que “obrigou” Rui Simões a reabrir um capítulo da sua filmografia que este considerava encerrado, depois de tanto ouvir a tia, que aparecia, no filme, a vender jornais, falar daquele documentário que nunca vira.

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Simões foi desafiado pelo autarca Daniel Vieira a regressar a São Pedro da Cova Rui Gaudêncio

Há uma década, então com vinte anos, o autarca comunista encontrou-se com Simões, na sede da produtora deste, a Real/Ficção, em Lisboa. “Recordo-me daquele miúdo. Queria saber mais sobre o filme, saber se havia mais imagens ou documentação. Confesso que nunca mais tinha pegado naquilo”, explicou ao PÚBLICO o realizador que se prepara para doar a São Pedro da Cova um acervo de material escrito sobre aquela produção feita a convite da Direcção-Geral de Educação Permanente mas que nunca chegou a ser emitida na RTP, ao contrário do previsto. Depois daquela interpelação emocionada de Daniel Vieira, a que seguiram novos contactos, antecedendo os 40 anos da criação do CRM, Simões descobriu, nos seus arquivos, bobines de 8mm de uma câmara pessoal que o acompanhava sempre (o filme foi gravado em 16mm), diapositivos e negativos que vão enriquecer o DVD a editar. E aceitou, apesar da magreza do orçamento que se pôde arranjar entretanto, filmar de novo.

O regresso a São Pedro da Cova permitiu-lhe o reencontro com alguns dos participantes nesses episódios de 75/76. Serafim Gesta, o Mazola, que leva já uma vida escavando, do fundo dos papéis e das memórias dos habitantes, a história da vila, foi um dos que, lembra Rui Simões, se aproximou imediatamente dele, acabando por escrever textos para o filme e a participar na história com dois papéis, "fazendo" de si próprio, num caso e, noutro, ficcionando o padre que, em 1793, tentou guardar para si o segredo, e o proveito, do carvão então descoberto pelo seu criado. 

Mazola, um homem do MDP-CDE que editava O Diálogo, jornal local nascido no fervor da revolução, era técnico de vendas de medicamentos. Dos consultórios por onde passava, trazia caixas de remédios para os moradores da Vila e, com os seus contactos no Ministério da Saúde acabou por se tornar numa peça essencial para uma solução que permitiu o pagamento de reformas a cerca de um centena de antigos mineiros que, tendo trabalhado no subsolo até à década de 40, não estavam sob a alçada de nenhum sistema de previdência. “Ninguém de São Pedro da Cova ou de outra terra que aqui tivesse trabalhado tirou lucro da exploração de carvão das minas. No entanto, o fruto que saía das suas entranhas e enriqueceu meia dúzia de parasitas serve hoje como pano de fundo à mais horrenda tragédia que se abateu sobre o povo mineiro”, escrevia, em 1981, no seu livro Um Grito Rompe o Silêncio, reeditado recentemente pela junta.   

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Serafim Mazola estuda há décadas a história de São Pedro da Cova Paulo Pimenta

Apesar de ser também ele, pelas palavras, um guardião dessa memória de resistência, Mazola olha para a obra de Rui Simões como o “garante da imortalidade” da acção do CRM nesse “período luminoso” - expressão do autarca Daniel Vieira - da história desta comunidade. E o realizador assume o peso dessa responsabilidade. “Era essa a função do filme. Como tem sido aliás, a de todo o meu trabalho, embora ali seja mais evidente”, afirma, recordando “a boa recepção” que no ano seguinte esta obra teve na competição, em Berlim, cidade onde se encolheu perante o ambiente Snob, o dinheiro para as grandes produções, que contrastavam com a pobreza de recursos com que filmara os seus mineiros.

Simões, como as gentes de São Pedro da Cova, queria fazer passar uma mensagem. E é inesquecivel, nesse filme de 76, o plano em que Mazola, à frente de uma pequena multidão, numa rua estreita, se vira, com os seus olhos enormes, sempre muito abertos, como hoje, para a câmara, instalada num carro que se há-de afastar, deixando um recado para o Governo de Lisboa: “Não se esqueçam de São Pedro da Cova, resolvam os seus problemas”. Palavras ditas em 1976, que ecoam hoje pelas escombreiras onde, a céu aberto, milhares de toneladas de resíduos perigosos, depositados em 2001, são, ainda, um “novo” problema, com mais de uma década e meia, que só em 2018, segundo o Governo, será resolvido. “Era a mina, era a mina, mas agora é cá fora que a luta continua”, já dizia a canção.

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