A César o que é de César

Os juízes não têm formação para entrevistar crianças vítimas de abusos sexuais e as consequências são desastrosas.

Tem sido notícia e alvo de polémica o novo método para ouvir menores vítimas de abusos sexuais que tem vindo a ser testado, no âmbito de um projeto-piloto, na Comarca do Porto. Concretamente, de acordo com o mesmo, ao invés de ser o juiz de instrução criminal a inquirir, no âmbito de uma investigação, a criança alegadamente vítima de abusos sexuais, é um psicólogo forense com formação para o efeito a fazer essa entrevista.

Desconheço quem tenham sido os “pilotos” a pôr em marcha este projeto, mas têm o meu aplauso! A razão é simples e insofismável — os juízes não têm formação para entrevistar crianças vítimas de abusos sexuais e as consequências são desastrosas. E quem diz os juízes diz também os procuradores do Ministério Público e inspetores da Polícia Judiciária que, no âmbito de investigações por crime de abuso sexual de menores, procedem igualmente à sua inquirição.  

De magistrados, já vi e ouvi de tudo em matéria de inquirições a estas crianças. Seja dizendo que têm especial intuição para perceber se elas falam a verdade, seja defendendo que por serem pais têm experiência com crianças e, por isso, facilidade em inquiri-las, ou ainda sustentando que, como já fizeram centenas de inquirições a menores vitimas de abusos, estão habituados — e, portanto, habilitados — a entrevistar estas crianças. Um dos resultados desta absurda convicção é acharem que, após inquirirem um menor, percebem se foi ou não vítima de abusos sexuais, se falou ou não a verdade ou se foi ou não sugestionada por algum terceiro. A outra consequência — esta mais catastrófica — é a própria credibilidade das declarações das crianças ser afetada, não por culpa delas, mas porque as perguntas foram feitas e as entrevistas conduzidas de modo errado.

Ao contrário do que muitos defendem, não é um juiz que numa entrevista consegue avaliar se os abusos relatados por um menor são fruto da sua vivência pessoal ou se foram visionados numa telenovela. Não é um juiz que conseguirá aferir se aquele relato é real ou fruto da imaginação da criança. E não é o juiz que conseguirá alcançar a espontaneidade do discurso de uma criança, a genuinidade das suas declarações e o sofrimento ou danos que a mesma possa aparentar. Porque a inquirição estará desde logo minada — e a credibilidade da criança beliscada — a partir do momento em que é conduzida por um magistrado e não por um profissional com formação específica para o efeito.

Não tendo qualquer preparação, muitos são os magistrados que, naquelas inquirições, colocam às crianças perguntas direcionadas ou de escolha forçada e sugestiva, fazem perguntas contendo várias opções de resposta ou então muito extensas ou complexas. Desconhecem completamente a real capacidade cognitiva das crianças, dependendo da sua idade; não fazem ideia que com perguntas abertas se lhes extrai mais informação, mais credível e mais rigorosa; desconhecem que não se devem colocar duas opções numa pergunta formulada à criança por haver tendência de ela escolher uma (ainda que ambas sejam erradas); ou não sabem, por exemplo, que somente 15% das crianças abusadas e objeto de penetração apresentam traumas físicos. Tudo isto não sou eu que digo — é a ciência e a literatura.

Os nossos magistrados, por quem tenho um profundo respeito, não sabem tudo. Mas, nesta matéria, a culpa não é deles, mas da lei! É o nosso Código de Processo Penal que estabelece que a inquirição realizada a menor no âmbito de uma investigação por crime de abuso sexual “é feita pelo juiz, podendo em seguida o Ministério Público, os advogados do assistente e das partes civis e o defensor, por esta ordem, formular perguntas adicionais”.

Significa isto que, não obstante a flagrante impreparação dos magistrados para realizarem estas inquirições, tem alguma razão parte da classe judicial quando, invocando a letra da lei, se insurge contra o referido projeto-piloto que está a ser testado na Comarca do Porto. Contudo, se bem atentarmos aos moldes em que as inquirições são realizadas no âmbito daquele projeto, não se trata de colocar o técnico a fazer a inquirição à revelia e sem o controle do juiz de instrução criminal. Apesar de ausente da sala onde a entrevista tem lugar, o magistrado supervisiona a diligência, estando num espaço contíguo com vidro unidirecional — juntamente com o procurador do Ministério Público e restantes sujeitos processuais —, tudo vendo e a tudo assistindo, sendo que no(s) intervalo(s) da inquirição, o psicólogo que procede à entrevista dirige-se a essa sala e recebe as questões que o juiz, procurador e advogados consideram que devem ser colocadas. E toda a diligência é gravada em áudio e vídeo para ficar documentada no processo e ser enviada para o tribunal.

Com este formato, o juiz de instrução criminal assiste e supervisiona a inquirição do menor, o princípio do contraditório e da imediação da prova são salvaguardados, a entrevista é conduzida por quem sabe e tem formação para o efeito (um psicólogo forense) e, em consequência, há uma maior probabilidade de se extrair a verdade da criança. Alternativa? Fala-se em dar esta formação específica aos magistrados. Seria uma boa hipótese (e não se trataria de umas horas ou semanas). A questão é saber se há recursos para o fazer e se, com tantos processos em mãos, lhes resta tempo para despender.

O autor escreve segundo as normas do novo Acordo Ortográfico

 

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