E se o Porto inventasse um Obamacare em versão Habitar?

Mudou-se para o Porto para implementar um projecto de reabilitação na freguesia do Bonfim. E, um ano depois, chegou a Campanhã. No Habitar Porto, criado por Aitor Varea Porto, arquitectos e educadores sociais buscam uma outra cidade. Com habitação a preços justos.

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Mónica Loureiro, José Pedro Silva, Joana Coutinho, Bernardo Amaral e Liliana Mendes são alguns dos voluntários do Habitar, rostos das “brigadas mistas” que no último meio ano têm percorrido o Porto a sentir-lhe o pulso, a identificar problemas e procurar soluções Nelson Garrido

O sol bate envergonhado na estreita fila de casas escondidas para lá da fachada do número 172 da Rua de São Victor, no Porto. Sentada num banco à porta de uma das habitações da ilha, sorriso posto, Fátima Castro vai apresentando o espaço que conhece desde menina. Fez-se gente ali, lugar de amizades enraizadas, de “condomínios sem condomínios”, e quando o pai morreu, há mais de 30 anos, tornou-se proprietária. Sem recursos, foi vendo as pequenas casas a degradarem-se. Os moradores a saírem. Agora, só três dos oito espaços preservam vida lá dentro. Fátima viveu anos entre a tristeza de ver o seu legado danificar-se e a convicção de não o vender.

— Isso nunca! Pensei sempre: “Um dia há-de ser dia.” E foi mesmo.

A resposta encontrou-a afixada num panfleto na junta de freguesia do Bonfim, onde reside. Chamava-se Habitar e prometia apoiar proprietários, inquilinos e profissionais a facilitar processos de recuperação conseguindo habitação a preços justos. E cumpriu. A pré-candidatura ao Reabilitar para Arrendar, do Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana (IHRU), já foi aprovada e 2018 deverá ser ano de ilha renovada. O programa de arrendamento será depois em regime de renda condicionada. Com ganhos para todos.

Aitor Varea Oro transportou o sonho do direito à habitação de Valência para o Porto. Assinou uma parceria com a junta de freguesia do Bonfim a desejar tornar-se o “arquitecto de família” daquela população e, um ano depois do arranque do projecto, perdeu a conta aos atendimentos que fez e está a dar resposta a nove casos. Em Março, alargou a zona de intervenção à junta de Campanhã. E do projecto pessoal nascido da sua tese de doutoramento burilou um desígnio plural, com a educadora social Liliana Pacheco a assumir, ao lado dele, o papel de coordenadora. E uma rede de gente disposta a fazer do Habitar Porto “um projecto de vida”.

São arquitectos e educadores sociais. Mas as afinidades vão para lá disso: são pragmáticas, operacionais, ideológicas. Aitor soube desde o início que conseguir habitação a preços justos não era tema com resposta “no estirador”, mas sim “entre as pessoas que integram a produção do espaço urbano”. Para ele, “a arquitectura é uma acção colectiva” e a habitação não é uma questão exclusivamente técnica. Longe disso.

Mónica Loureiro, José Pedro Silva, Joana Coutinho, Bernardo Amaral e Liliana Mendes vão descendo São Victor, a rua com mais ilhas do Porto, a caminho da propriedade de Fátima Castro. São alguns dos voluntários do Habitar, rostos das “brigadas mistas” que no último meio ano têm percorrido o Porto a sentir-lhe o pulso, a identificar problemas e procurar soluções. A inspiração da designação surgiu do Processo SAAL, o projecto arquitectónico e político criado poucos meses depois do 25 de Abril sobre o qual o arquitecto espanhol Aitor Varea Oro se debruçou no seu doutoramento. A ideia destas brigadas é ir ao encontro de quem, precisando de ajuda, não chegava ao Habitar. “São equipas de arquitectos e educadores sociais que vão a casa de utentes do gabinete de acção social da junta e fazem uma avaliação física e social”, explica Aitor.

É que o sistema é muitas vezes excessivamente complexo. “As pessoas não conhecem as ferramentas que existem e os recursos estão separados”, diagnostica. O Habitar Porto quer ser um facilitador e também ajudar a detectar e corrigir falhas. E são várias: “É possível recuperar um edifício na sua totalidade, mas não se pode compor uma telha porque os programas não têm esses parâmetros”, exemplifica a também arquitecta Mónica Loureiro. E outra: “Não há recursos para quem quer reabilitar para usufruto próprio.”

Não podia vender a “casa onde tudo aconteceu”

Durante semanas, Otília Lage madrugou para apanhar os primeiros jornais na banca e responder aos anúncios d’ O Primeiro de Janeiro. Um dia, estava o 25 de Abril de 1974 a dois anos de se revelar, encontrou um “'chalet' ao Marquês” e enamorou-se dele. Ainda solteira, juntou-se ao irmão e arrendou o espaço. Por 2200 escudos. Na castiça casa amarela, onde viveu entre 1972 e 1997, muito se passou. “Foi sempre uma casa muito politizada”, revela Jorge Lage, ex-marido de Otília e agora proprietário da moradia. “Estávamos sempre vigiados. Chegamos a pensar fazer um museu associação marxista-leninista”, recorda entre sorrisos.

Os anos degradaram a casa, sem habitantes há mais de duas décadas. Jorge nunca se interessou por novas estratégias de rentabilização do espaço, como o alojamento temporário. E vender também não era para ele uma opção. Afinal, como podia desfazer-se da “casa onde tudo aconteceu?”, como interroga o neto mais velho. Quando em Abril de 2016 viu a notícia sobre a abertura do projecto Habitar no PÚBLICO, o clique aconteceu: estaria ali a resposta deles?

No gabinete de Aitor, delinearam juntos uma estratégia: concorrer a um apoio do IHRU e, dessa forma, ter meios para reabilitar a casa. A pré-candidatura já está aprovada, as obras devem arrancar em Setembro. Em troca, Jorge Lage compromete-se a arrendar a casa na Rua da Constituição por pouco mais de 300 euros durante cinco anos. “Podiam ser 15, mas assim pode ser que ainda a aproveite para mim. Gostava de voltar. Mas se não acontecer que fique para as rebaldarias nos nossos netos”, diz. “Que sejam felizes ali como fomos nós.”

Na outra ponta da freguesia do Bonfim, já a poucos passos de Campanhã, Manuela Vieira está menos optimista. Há dez anos que procura habitação social no Porto e esbarra na mesma resposta: “Dizem-me que há casos piores do que o meu, não sou uma prioridade”, lamenta. Vive num prédio “muito degradado” na Rua do Lourenço e há anos que pede ao senhorio que faça obras. Há meses, uma das suas vizinhas veio falar-lhe do Habitar e Manuela foi até à junta. De lá, não trouxe o nome de um apoio ao qual se pudesse candidatar, mas linhas orientadoras para a adopção de uma estratégia colectiva. Cooperativa.

Não é um plano de fácil execução. No prédio de dois andares e quatro habitações onde vive, nem todos estão alinhados. “Uma pessoa mete-se a pensar para onde vai morar quando as obras começarem e fica com medo”, nota Manuela. É o caso de uma senhora de 92 anos, viúva e sozinha, para quem o reboliço é um cenário temível. “Vai ser muto complicado”, vai repetindo Manuela, 59 anos.

No prédio, são precisas obras de grande monta. O tecto está degradado, chove na cozinha, há infiltrações, humidades. Se fizessem a intervenção necessária, a renda de 190 euros que paga agora seria provavelmente aumentada. E isso ela não pode comportar. “Estou desempregada, tenho apenas o RSI [Rendimento Social de Inserção] e tenho uma filha de 21 anos que está a estudar. Está muito difícil viver no Porto, as rendas são caras.” Sem outra solução, tem tentado organizar os vizinhos para regularizar os contratos de arrendamento e solicitar obras ao senhorio. Mais uma vez. Ele já lhe prometeu que é desta: no próximo ano haverá melhorias. E Manuela tenta acreditar: “Já se sabe que o interesse do senhorio é sempre diferente do dos inquilinos. Mas vamos ver...”

É entre essa “batalha” que o Habitar se tem posicionado. Em “linguagem de intervenção social”, explica Liliana Pacheco, chama-se fazer “mediação”. Muitas vezes, há um confronto de interesses entre inquilinos e senhorios, uma ideia de que tem necessariamente de existir um “ganha-perde”. E não tem, acreditam.

Ao Habitar — que agora tem um gabinete no número 95 da Rua de São Victor — têm chegado muito mais pessoas em busca de habitação do que proprietários à procura de soluções. E isso, diz Aitor Varea Oro, era “expectável” e “não é necessariamente um problema”: “Se conseguirmos criar um interesse comum e, por exemplo, comprar uma propriedade ou falar com o proprietário para que candidate o património a programas de renda condicionada pode haver uma solução." Por outras palavras: “Às vezes, o problema de um é a solução de outro”, acrescenta a educadora social Liliana Mendes.

No Habitar não há um plano de acção único. Nem perfis padrão. “Cada casa é um caso”, diz José Pedro como se de um lema se tratasse. E a “vantagem” da equipa de arquitectos e educadores sociais é tratar todos de forma diferente. Dar a volta ao sistema. Baralhar e dar as cartas de novo. “Não é inventar a roda”, simplifica Liliana Pacheco: “É articular de forma diferente recursos que estamos habituados a ver separados e soluções que costumamos ver segmentadas.”

Foi assim “o caso da dona Fátima”, nota Bernardo Amaral, arquitecto com experiência em recuperação de ilhas que decidiu juntar-se ao Habitar. Ali, não só se conseguiu conciliar os interesses da proprietária e dos inquilinos como ainda se fundaram as bases para a criação de uma competição de arquitectura para estudantes. O concurso ibérico Pladur vai pôr cerca de 1000 jovens a pensar sobre novas soluções para as ilhas: “Melhores condições de vivência e salubridade, preservando a sua identidade e essencialmente as pessoas que aí habitam”, explicou João Gabriel, gerente comercial da Pladur, fabricante de soluções de revestimento interior. E em cima da mesa está também a possibilidade de a empresa fornecer materiais para a reabilitação da ilha.

Um problema de toda a cidade

No Bonfim, a matéria-prima é vasta. São 2000 as casas devolutas, 20 por cento da habitação da freguesia. Não se sabe quantas são as sobreviventes em más condições de habitabilidade. A parceria da junta com o Habitar limita-se agora “à cedência de um espaço para atendimento”, conta o próprio presidente eleito nas listas de Rui Moreira, José Manuel Carvalho. Mas as ligações são mais profundas, garante: “A habitação é uma prioridade e queremos tê-los por cá.”

Também Ernesto Santos, presidente da junta de freguesia de Campanhã, aceitou de bom grado ter o Habitar por perto. Da habitação não tem um diagnóstico feito em números. Nem precisa: “Sei que é um enorme problema e não é só na minha freguesia, é na cidade toda.” O Habitar — como o projecto Casa Arrendada, Vida Melhorada — é uma forma de “minimizar” o obstáculo. “Meia dúzia de casos que se possam melhorar são meia dúzia de problemas a menos. Não podemos pensar em grandes números”, admite.

Fátima Castro guarda religiosamente o caderno preto onde escreveu à mão um longo texto explicativo. Registou o que pensa a sonhar com uma ida à televisão onde possa falar da vida de uma portuense numa cidade em mudança. “Está aqui tudo”, vai anunciando enquanto lê alguns trechos. Na Rua Formosa, onde  trabalhou durante 47 anos, numa frutaria, começaram há uns cinco anos a perguntar-lhe se sabia de casas para arrendar. “As deles estavam a ser vendidas para 'hostels' e eles a ir para a periferia.” Na rua onde vive, a poucos minutos, os vizinhos a quem pedia uma mão se algo lhe faltasse foram-se embora. Na casa ao lado, está também um hostel.

— Farta de 'hostels' estou eu!

Para ela, a cidade deve uma outra coisa. Para Aitor Varea Oro e o Habitar Porto também.

E esse, diz Liliana Pacheco, é um “tema a precisar de ser debatido”. “Mas sem visões maniqueístas, sem nós e eles, preto e branco. Porque a cidade não funciona assim.” Soluções? Uma “intervenção na base educativa” e, no imediato, “uma formulação de políticas que sejam percursoras em vez de correr atrás do prejuízo”. Na prática, encarar a habitação como outros ramos: “Gostava que houvesse um sistema de habitação, como há um sistema de saúde e de educação”, atira Mónica. E Aitor Varea Oro remata com uma referência ao projecto do ex-presidente norte-americano Obama: “No fundo, era fazer do Habitar uma espécie de HabitarCare.”

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