“Este espectáculo pode ser o último, e isso é bonito”

No dia em que faz 60 anos, e mais de 30 depois de ter deixado de dançar, Rui Horta regressa aos palcos, a solo, estreando Vespa no Centro Cultural Vila Flor, em Guimarães. É um gesto de resistência.

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Rui Horta em Vespa Paulo Pacheco
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Rui Horta em Vespa DR

É caso para dizer: hoje é o primeiro dia do resto da vida de bailarino de Rui Horta, 60 anos, cumpridos precisamente esta quinta-feira, dia em que regressa aos palcos, a solo, estreando Vespa no pequeno auditório do Centro Cultural Vila Flor, em Guimarães.

Fá-lo mais de 30 anos depois da sua última performance como bailarino, quando, em meados dos anos 80, regressado de vários anos de formação em Nova Iorque, teve de interromper a sua carreira por causa de uma tendinite numa perna e do rompimento do tendão de Aquiles.

“Tive uma recuperação muito lenta; depois, quando finalmente pude recomeçar a dançar, já estava a coreografar, e isso estava a dar-me muito gozo”, conta Rui Horta ao PÚBLICO no final de um dos ensaios de Vespa. “Isso foi sempre uma desculpa para não voltar ao palco, porque a vida depois tornou-se cheia, complicada”, acrescenta o coreógrafo recordando as sucessivas tournées com as suas criações, a ida para a Alemanha nos anos 90, onde dirigiu o S.O.A.P. Dance Theatre Frankfurt. E, depois do regresso a Portugal, a fundação, no ano 2000, do centro multidisciplinar O Espaço do Tempo, em Montemor-o-Novo.

Agora que este centro “atingiu a velocidade de cruzeiro”, e que tem os seus filhos criados, Rui Horta achou que era o tempo certo para regressar aos palcos. Mas fá-lo assumidamente “no fio da navalha”. “Estou todos os dias no fio da navalha, sempre; cada dia é um dia, e cada espectáculo pode ser o último, e isso é bonito”, admite, no final do ensaio de quase uma hora, e depois de pedir gelo para atenuar a dor num ombro. Mas também assegura que está a “gostar muito de estar no palco – uma coisa inusitada passados mais de 30 anos”. E em simultâneo com essa consciência da fragilidade do ser humano – tema que, de resto, atravessa a acção de Vespa –, Rui Horta fala também com grande entusiasmo das tournées que tem já previstas pelo país fora ao longo deste ano, e também do regresso ao estrangeiro no Inverno e na Primavera de 2018. “Mas não estou a assinar contratos com ninguém; estou a ir com calma: vamos ver como correm os primeiros espectáculos, e como me sinto fisicamente."

O zumbido do criador

Vespa abre com o palco a negro; ao fundo, uma caneta fluorescente, um zumbido de insecto e uma voz um pouco cavernosa dizendo: “Há coisas que temos dentro da cabeça, como um zumbido a roer o pensamento…”.

Pouco a pouco, vai-se desvendando o vulto de um homem com uma máscara, um corpo mecânico, incerto, revestido com uma armadura. A voz continua a reflectir a situação do criador, a cabeça a explodir de não conseguir dar expressão às suas ideias, à sua obra. “É a ideia de que existe alguma coisa dentro de nós; uma luta que no início se sente entre aquela caneta de luz e a máscara do homem”, diz o coreógrafo, que como tal tem sempre a sua vespa dentro da cabeça, e “terá um zumbido um pouco maior do que os outros". "E se não o pusermos cá fora, rebentamos”.

Precisa de libertar-se desse “exo-esqueleto”, “largar a casca”, retirar as próteses e com elas criar novas formas, novas poses, novas expressões. É então que o corpo deste “veterano selvagem” dança, ao som de Bach tocado com baixo eléctrico, alternando com a narração de histórias que parecem retiradas da sua história pessoal. Mas Rui Horta recusa a autobiografia. Não lhe interessa contar a sua vida, o passado – “Para mim, o passado é um tição queimado; o que é preciso é pôr mais lenha na fogueira para queimar mais, para dar mais calor”, diz –, antes quer falar para a frente, para o futuro. Mas pegando em histórias e casos do (nosso) presente: os problemas da ecologia, os riscos da exploração do petróleo na costa algarvia, por exemplo; a necessidade de resistir, de lutar, mas também de continuar a dançar – depois de ouvirmos a Internacional rodada numa pequena caixa de música, Vespa termina ao som e ao ritmo do hip-hop.

Se, no decorrer da acção, se reflecte sobre a pequenez e a finitude do homem, já que “todos vamos desaparecer”, e com uma piscadela a uma entrevista com Óscar Niemeyer – “Adoro-o, não apenas porque eu próprio gostaria de ter estudado arquitectura e ter feito casas, mas porque ele é o homem que, tendo vivido até aos 103 anos, conquistou o tempo e o espaço" –, Vespa olha em frente, optimista e militante.

"As minhas peças são os meus crimes"

Rui Horta explica ter admitido chamar à sua nova criação – além de intérprete, é o autor do texto, da luz e da banda sonora – Serial Killer. “Porque as minhas peças são os meus crimes, de que me escondo atrás do palco, atrás dos actores, dos bailarinos”. E acrescenta: “Hoje vou-me entregar à polícia: ‘Estou aqui, tenho esta cara’."

O bailarino e coreógrafo sabe também que, do lado da plateia, haverá também sempre algo de voyeurismo: “Vamos lá ver o que é que o Rui Horta consegue fazer, ver se ele cai, se há qualquer acidente, como nas corridas da Fórmula 1, que é isso que também leva as pessoas a ver a arte ao vivo."

É o “lado sacrificial da criação”, e Rui Horta vê nesse misto de dádiva e entrega algo “muito bonito”. Mesmo se Vespa, com que assinala esta quinta-feira o seu 60.º aniversário – uma coincidência fortuita, explica, ele que decidiu partir para esta aventura no Verão passado –, for o seu último espectáculo.

Se não for, será retomado, a 29 de Abril, Dia Mundial da Dança, em Coimbra (Convento de São Francisco), correndo depois o país, até chegar ao Porto já no próximo ano.

Paralelamente, Rui Horta continua a “lutar” nas outras frentes da sua carreira. Depois de no final de Janeiro ter apresentado a coreografia Shift no Tantztheater Mainz Frankfurt – integrado no programa de comemoração dos 500 anos da Reforma luterana –, espera conseguir encontrar os meios para concretizar a ópera O Rapaz que Aterrou na Praça Vermelha, com libreto de Stephen Place e música de Luís Tinoco. Porque, além do aniversário da Queda do Muro de Berlim, passam também agora 30 anos desde que o jovem piloto alemão Mathias Rust iludiu a segurança soviética e aterrou o seu pequeno Cessna na praça central de Moscovo. “E nós temos de ter utopias; com a nossa arte temos de continuar a aterrar em qualquer lado”, acredita Rui Horta.

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