A malta das trincheiras

Nos 100 anos da entrada de Portugal na Grande Guerra, luzes sobre uma zona de sombra: os prisioneiros da frente europeia.

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Prisioneiros Portugueses da Primeira Guerra Mundial
é um contributo importante para a historiografia da Grande Guerra daniel rocha

Não é a primeira vez que um jornalista de formação se aventura nos caminhos da História Contemporânea e, em particular, da Primeira Guerra Mundial. Antes deste trabalho de Maria José Oliveira, já Manuel Carvalho havia publicado um livro de grande interesse e inquestionável qualidade sobre o desastre do exército português em Moçambique durante o conflito de 1914-18, intitulado A Guerra Que Portugal Quis Esquecer (Porto, 2015).

O facto de se salientar a formação de base destes autores não visa, de modo algum, menosprezar as suas capacidades de investigação de acordo com exigências académicas ou critérios científicos. Muito pelo contrário. Desde logo, porque o livro de Maria José Oliveira é produto de uma dissertação de mestrado apresentada na Universidade Nova e, por isso, cumpriu integralmente os protocolos e os requisitos específicos do labor universitário (ainda assim, e como a autora teve ocasião de mencionar na Nota Prévia e numa entrevista ao Diário de Notícias, de 9-4-2017, este livro é uma versão bastante ampliada e substancialmente reformulada da sua tese). Mas, acima de tudo, sublinhar a formação e a experiência profissional de Maria José Oliveira­  jornalista do PÚBLICO entre 1996 e 2012 e colaboradora da Visão História de 2012 a 2015­  constitui uma nota importante na medida em que permite compreender alguns dos muitos méritos desta obra: por um lado, a fluidez narrativa e a opção por uma lógica de “reportagem de investigação” que lhe permitiu, pacientemente, identificar 259 prisioneiros portugueses mortos em campos de internamento e de trabalhos forçados na Alemanha, em França, na Bélgica e na Polónia, reconstituindo as suas trajectórias biográficas e, como é timbre de um olhar jornalístico, dando prevalência a casos concretos e a histórias de vida em detrimento de construções analíticas ou abordagens conceptuais apresentadas sob a forma de “teses”; por outro lado, e mais decisivamente, a formação de base de Maria José Oliveira explicará, em larga medida, a relevância conferida aos testemunhos pessoais, em regra prestados sob a forma de cartas escritas para familiares, abundantemente transcritas e com um forte poder evocativo e uma enorme carga emocional que merecem ser realçados.

O tema de que a autora se ocupa não é absolutamente inédito, porquanto sobre os prisioneiros de guerra e os seus destinos já foram publicados diversos textos. Sem contarmos, claro está, com as variadas referências feitas em obras de alcance mais geral, destacam-se depoimentos memorialísticos, como os de Carlos Olavo (Jornal d’um prisioneiro de guerra na Alemanha, 1919), de António Dias (Nas garras da Kultur. Impressões de um prisioneiro de guerra na Alemanha, 1920), de Alexandre Malheiro (Da Flandres ao Hanover e Mecklenburg. Notas dum prisioneiro, 1925), de António Braz (Como os prisioneiros portugueses foram tratados na Alemanha, 1935) ou de Manuel Hermenegildo Lourinho (Prisioneiros portugueses na Alemanha (guerra de 1914-1918), de 1981), além de um artigo de Nuno Severiano Teixeira com o título A Fome e a Saudade. Os Prisioneiros Portugueses na Grande Guerra, saído em 1992 na revista Penélope.

O livro de Maria José Oliveira vem, ainda assim, preencher uma lacuna na já vasta bibliografia sobre a participação portuguesa na Grande Guerra, uma vez que sobre a realidade dos prisioneiros e dos desaparecidos em combate, a par de relatórios oficiais (como o saído em 1934 sob a égide da Liga dos Combatentes), não existia um levantamento tão sistemático ou, melhor dizendo, tão assente na documentação, de carácter epistolar e não só, que a autora escrupulosamente pesquisou em diversos arquivos, completando, por assim dizer, um trabalho de recuperação da guerra vivida que tem sido empreendido por diversos historiadores, com destaque para Isabel Pestana Marques.

Existem, decerto, algumas omissões na bibliografia secundária, das quais as mais evidentes são, à primeira vista, o volumoso e recente estudo de Christopher Clark, Os Sonâmbulos. Como a Europa entrou em Guerra em 1914, de 2014, e, sobre a vivência no front, o livro O Rosto da Batalha, de John Keegan, publicado entre nós em 1987. Além dos presos e desaparecidos, outra realidade que interessaria estudar com mais profundidade, ainda que não no âmbito deste livro de Maria José Oliveira, seria a dos que morreram e se encontram sepultados no estrangeiro, designadamente em França (sobre este ponto, cf., por exemplo, entre tantas outras, a interessantíssima reportagem de Benoît Hopquin, A Richebourg, la fierté portugaise en héritage, Le Monde, de 13/5/2014). E, se quiséssemos ir mais longe, importaria ainda analisar o impacto cultural desta realidade e situar a problemática dos presos e dos desaparecidos nas evocações da tragédia de 1914-1918 feitas na época e nos anos subsequentes, tarefa empreendida por Jay Winter num livro admirável, Sites of Memory, Sites of Mourning: The Great War in European Cultural History (1995), na esteira do qual Sílvia Correia publicou Entre a Morte e o Mito: Políticas da Memória da I Guerra Mundial (1918-1933), obra de 2015.

De muitos prisioneiros se julgou, num primeiro momento, terem morrido em combate. A Grande Guerra foi dos conflitos que mais “soldados desconhecidos” produziu, tal o número de desaparecidos ou cadáveres jamais encontrados ou identificados. Para isso contribuiu decisivamente a combinação perversa de dois factores: por um lado, o uso em larga escala, e pela primeira vez na História, de tecnologia bélica capaz de provocar a morte à distância (ex., explosivos, gás mostarda); por outro, a persistência de formas e tácticas de combate que mantinham uma grande proximidade dos militares face ao inimigo, a ponto de, em muitas ocasiões, os soldados de ambos os lados das trincheiras se avistarem e até poderem conviver amigavelmente, como aconteceu na célebre Weihnachtsfrieden ou Christmas truce, a trégua de Natal de 1914 em que alemães e britânicos decidiram largar as armas e, em vez de tiros, trocar entre si saudações festivas, cânticos natalícios­  e até presentes!

Para lá da conjugação proximidade ao inimigo/morte à distância, a Grande Guerra trouxe para a frente de combate dispositivos ou armamento que permitiam, por assim dizer, uma «industrialização da matança», frequentemente provocando o esfacelamento total e o desaparecimento dos corpos das vítimas. Daí que muitos tenham sido dados por «desaparecidos», como aconteceu a António Maria Lourenço, avô da autora deste livro, e com uma incrível história de vida: embarcado para a guerra em Fevereiro de 1917, foi dado como “desaparecido em combate” na batalha de La Lys. Em Buarcos, de onde era natural, os pais e os irmãos vestiram luto; fez-se um funeral sem corpo presente; encomendaram-se missas. Todavia, António Lourenço não morrera­  fora, isso sim, aprisionado pelos alemães. Finda a guerra, em Janeiro de 1919 embarcou no Gil Eanes, em Cherburgo, e quatro dias depois estava em Alcântara, de onde regressou a casa e à família que o tinha por morto e até rezara por sua alma.

Apesar do seu carácter impressionante (é com ele que a autora abre o livro, tendo-lhe antes dedicado uma reportagem no PÚBLICO, de 22/10/2010), não foi um caso inédito, por certo. Tanto assim é que por toda a Europa e pelos Estados Unidos floresceram as tentativas desesperadas de contactar os filhos mortos ou desaparecidos na frente, tendo a Grande Guerra dado um gigantesco impulso ao espiritismo, por exemplo, como acentua Jay Winter no livro atrás citado, bem como a um surto de religiosidade e misticismo até ao que em França se chamou o “regresso aos altares”, aspectos tratados por Maria Lúcia de Brito Moura em Nas Trincheiras da Flandres. Com Deus ou sem Deus, eis a questão, e pelo autor destas linhas no livro Sons de Sinos. Estado e Igreja no advento do salazarismo, ambos de 2010.

A dimensão desta realidade fica patente num número impressivo: estima-se que cerca de 750 mil presos tenham morrido nos cárceres de guerra. Ou seja, quase um milhão de seres humanos, entre os oito a nove milhões que foram aprisionados pelos dois lados da contenda. Entre os portugueses do CEP, mais de sete mil militares estiveram presos entre 1917 e 1918. Maria José Oliveira conclui que, desses presos, 259 morreram no cárcere, um número ligeiramente superior aos 233 falecidos que até aqui foram apontados por outros investigadores, como Luís Alves de Fraga, cuja obra Guerra & Marginalidade. O comportamento das tropas portuguesas em França, 1917-1918 mereceria ter sido consultada pela autora para um entendimento mais apurado do quotidiano das trincheiras, sobretudo das suas facetas mais sombrias.

A um olhar superficial, parecerá escassa a “novidade” trazida por este livro, isto é, uma mera correcção estatística­  e para mais provisória­  do número de prisioneiros portugueses mortos na Primeira Guerra. Trata-se de um manifesto equívoco. O livro procede a uma abordagem global de uma realidade muito pouco estudada, inclusivamente no estrangeiro, e, além de permitir compreender quais foram os momentos-chave das capturas no front, assinalando a batalha de La Lys um ponto de viragem neste domínio, apresenta testemunhos em directo do quotidiano dos prisioneiros dos alemães, transcrições de comoventes missivas que nunca chegaram ao destino, retratos da angústia das famílias, como a patente numa carta que, de Elvas, Benício Sobral escreve em Maio de 1918 ao Comité de Lausanne, onde diz, a dado trecho, que “a incerteza é o pior dos males, porque deixa na dúvida e na ansiedade horrível as pobres famílias que almejam ter notícias dos entes queridos que em países distantes se vêem a braços com a cruenta e horrível guerra que hoje oprime a Europa”.

O livro de Maria José Oliveira é publicado num tempo em que diversos países europeus ainda saram as feridas da Grande Guerra. Em 2013, abriu-se um debate em França em torno da proposta, feita por vários historiadores, para honrar a memória e perdoar aqueles que haviam sido fuzilados na frente de combate por crimes de delito comum mas também de guerra, como a espionagem a favor do inimigo, a traição e a deserção. Também em Portugal, vários historiadores, como Aniceto Afonso, propuseram em 2010 que fosse reabilitado o nome e perdoado João Augusto Ferreira de Almeida, condenado por traição e fuzilado na frente de combate, às 7h45 da manhã de 16 de Setembro de 1917.

Ao permitir conhecer melhor uma realidade não ignorada mas bastante esquecida, Prisioneiros Portugueses da Primeira Guerra Mundial é um contributo muito importante para a historiografia da Grande Guerra­  e para a rememoração da sua tragédia. De futuro, e como a autora afirma e reconhece, há ainda muito a fazer, nomeadamente na investigação do que sucedeu aos prisioneiros de guerra da frente africana. Mas, por ora, interessa tão-só salientar a seriedade da pesquisa feita para este livro, a sua qualidade narrativa e o valor que inegavelmente tem para reconstruir de perto, na crueza do real e do concreto, os percursos trágicos daqueles a que André Brun chamou a malta das trincheiras.

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