Cada vez mais longe da Europa

Hoje, a chanceler alemã precisa de Ancara para travar a vaga de refugiados que continua a desaguar nas margens da Europa. Mas o comportamento antidemocrático do Presidente turco deixou morrer o assunto das negociações.

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1. A Turquia chegará algum dia a ser membro da União Europeia? A resposta, nos dias que correm, parece ser relativamente fácil. Não. E nem sequer vale a pena dizer que a culpa é (toda) da Europa ou perguntar, em tom dramático, “quem perdeu a Turquia?” Recep Tayyipi Erdogan tratou de resolver o problema pelos europeus, enveredando por um caminho autoritário e nacionalista, drasticamente acentuado com o golpe falhado de Julho de 2016, que eliminou qualquer possibilidade de cumprir os critérios de Copenhaga obrigatórios para qualquer país candidato. São eles, para quem já não se lembre, a democracia, o Estado de Direito, o respeito pelos direitos humanos e pelas minorias. A questão é saber como se chegou aqui. A resposta não é linear. No seu longo percurso no poder, que começou em 2002, quando o seu partido (AKP, Partido da Justiça e do Desenvolvimento) ganhou as eleições legislativas, houve claramente dois Erdogan: aquele que parecia decidido a colocar a integração europeia no topo do seu programa político e o “homem forte” que concentrou quase todo o poder e que quer agora mudar a natureza do regime, que mantém na cadeia mais de 100 jornalistas, milhares de funcionários públicos, políticos da oposição. Não se trata apenas, ou no essencial, de uma questão religiosa, muito embora Erdogan a tenha utilizado a seu favor. Trata-se de uma questão política.

A segunda dimensão deste desastre que transformou o democrata Erdogan no “sultão” Erdogan é a política externa de Ancara, que abandonou a estratégia de integração europeia e os velhos laços com os EUA, por uma visão errática e contraditória sobre o seu lugar no mundo e o seu papel regional. E que é tanto mais importante quanto a geografia lhe atribui, hoje como ontem, um lugar central nos jogos de poder internacionais. Escreve a Reuters que “nunca em tempos recentes a Turquia, que é um dos dois membros muçulmanos da NATO [o outro é a Albânia], foi tão central para os assuntos mundiais, do combate ao Estado Islâmico na Síria e no Iraque, à crise migratória da Europa, às alianças em mudança constante com Moscovo e com Washington”. Há factos que vale a pena recordar para se perceber o caminho percorrido.

2. Quando o partido islamista moderado de Erdogan venceu folgadamente as eleições de 2002, a sua estratégia política tinha como principal objectivo a candidatura à União Europeia, incluindo as reformas democráticas que era condição básica para qualquer candidato. A primeira batalha tinha sido vencida quando, em 1999, o Conselho Europeu deu finalmente à Turquia o estatuto de candidato oficial. As negociações começaram em 2005, logo a seguir ao big-bang que alargou a União a mais dez países, de Leste e do Sul, um deles chamado Chipre, ainda hoje dividido, com parte da ilha ocupada pela Turquia (desde 1974). Nessa altura, o debate europeu sobre o lugar da Turquia na Europa comunitária ainda caía para o lado da integração, pelo que tinha de dimensão estratégica e política, desde o abastecimento energético em alternativa à Rússia passando pela fronteira com o Médio Oriente. A sua geografia asiática era compensada pela sua face europeia, presente desde a antiguidade clássica. A religião não devia contar como critério num projecto europeu assente em valores políticos e normas comuns, para além da diversidade nacional ou cultural. Joschka Fischer, o chefe da Diplomacia alemã de 1998 a 2005, considerava que ela seria o teste mais importante sobre o destine da Europa – pequeno clube rico e fechado ou actor de primeira linha na cena internacional. “Grande Europa ou pequena Europa”. Havia ainda a outra dimensão da questão, que a passagem do tempo tornava ainda mais importante: provar que o Islão era compatível com a democracia.

3. O pêndulo europeu começou a mudar de direcção com a chegada de Nicolas Sarkozy ao Eliseu em 2007. O Presidente francês rompeu com a posição oficial da França defendendo, em alternativa à adesão, uma “parceria privilegiada”, indo ao encontro da maioria dos franceses e da propaganda xenófoba da Frente Nacional. A chegada de Angela Merkel ao poder, em 2005, iniciou uma inflexão mais subtil na posição de Berlim, inclinando-se para considerar a Turquia como “uma questão em aberto”. Hoje, a chanceler precisa de Ancara para travar a vaga de refugiados que continua a desaguar nas margens da Europa. Mas, contas feitas, o comportamento antidemocrático do Presidente turco acabou por facilitar a vida aos europeus, deixando morrer o assunto das negociações. O mais curioso é que Erdogan já avisou a Europa de que, depois do referendo, voltará a colocar a adesão em cima da mesa.

4. Entretanto, as Primaveras Árabes alteraram profundamente a paisagem política do Médio Oriente. Ahmet Davutoglu, o académico que começou por ser conselheiro de Erdogan, foi seu chefe da Diplomacia e seu primeiro-ministro (até abandonar o barco por discordância com o Presidente) tratou de teorizar a nova política externa de Ancara, num quadro muito distinto do da Guerra Fria. Resumiu-a numa fórmula simples: “zero conflitos com os vizinhos”, vista como a melhor forma de afirmar o país como a potência dominante regional e como a ponte indispensável entre o Ocidente e o Islão. A recusa da passagem das tropas americanas a caminho de Bagdad, em 2003, ajudou a desanuviar o ambiente com os vizinhos mais hostis a Washington. Em 2010, Obama ainda definiu o país como “uma grande democracia muçulmana”. Foi pouco antes de Erdogan e Lula da Silva, em plena “embriaguez” das médias potências emergentes que acreditaram que o seu momento tinha chegado, resolverem ir a Teerão encontrar uma saída para o programa nuclear iraniano. Irritaram os Estados Unidos, não conseguiram qualquer apoio da Rússia ou da China no Conselho de Segurança, não tiveram qualquer sucesso. O destino da Síria e das outras Primaveras (à excepção da Tunísia) acabou por ser uma machadada final nessa estratégia, obrigando Ancara a uma série de voltas e reviravoltas, que ainda não terminaram. Hostiliza os EUA mas nunca chega a romper. Inicia uma aproximação a Moscovo sem grande futuro graças à oposição ao regime de Assad, com o qual o Presidente turco chegou a ter boas relações antes de Damasco resolver esmagar os protestos contra o regime. Aplaude os misseis americanos contra a base aérea síria de onde partiram os ataques químicos, mas quer ainda mais: uma zona de exclusão aérea. Na Europa, Erdogan cria conflitos com a Alemanha e a Holanda, para conquistar os votos das comunidades turcas nos dois países (acusou-os de práticas nazis) e exige a abolição dos vistos, sob pena de pôr termo aos acordos sobre os refugiados. “A Síria mudou tudo”, diz Henri Barkey do Wilson Center de Washington. A pergunta deixou de ser “quem perdeu a Turquia” mas “o que quer a Turquia”.  

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