Guerra Colonial: como se destrói um muro, através da História e Memória

A série documental de Joaquim Furtado A Guerra está a ser editada em DVD com livros assinados por Aniceto Afonso e Carlos de Matos Gomes. Este é o prefácio do volume dois — Salazar.

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Entrada de uma coluna militar numa povoação, Angola Foto gentilmente cedida pelo Jornal do Exército
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Lançamento de carga aérea, Angola Foto gentilmente cedida pelo Jornal do Exército

Há 56 anos, o regime ditatorial de António Oliveira Salazar viveu um annus horribilis, iniciado pelo assalto ao paquete «Santa Maria» e terminado com a ocupação dos territórios de Goa, Damão e Diu pela União Indiana. No entanto, o grande acontecimento nesse ano de 1961 foi o início da guerra colonial, em Angola, que alastraria, em 1963 e 1964, à Guiné e a Moçambique, marcando impressivamente pelo menos três gerações de portugueses. Para os jovens, obrigados a cumprir o serviço militar, com a duração entre dois a quatro anos, incluindo uma comissão de serviço numa colónia africana em guerra, bem como para os seus familiares, amigos e namoradas, essa estadia inevitável era vista como se de um muro divisório se tratasse, intransponível para alguns.

No final de 1964, já estavam envolvidos nas guerras em África 85 mil militares portugueses, respectivamente cerca de 52 mil em Angola, 18 mil em Moçambique e 15 mil na Guiné. No ano seguinte, devido ao facto de muitos jovens, por razões económicas e/ ou políticas, se tornarem refractários ou desertores, o Estado-Maior do Exército emitiu instruções secretas, segundo as quais os incorporados nas Forças Armadas passavam a ser divididos em três grupos, consoante a sua classificação fosse de «insuspeitos», «suspeitos» (ou «politicamente suspeitos» – PS) ou de «activistas» (ou «politicamente activos» – PA). Não só a repressão, mas também a Censura agudizou-se, desde o início da guerra colonial, com a introdução de novos temas proibidos, chegando o governo a “cortar” na imprensa notícias sobre as partidas de soldados para África e a proibir os próprios adjectivo «colonial» e substantivo «colónia».

Na sequência da queda de uma cadeira de lona, Salazar foi substituído na presidência do Conselho pelo presidente da República, Américo Tomás, em Setembro de 1968, embora a questão colonial e a guerra continuassem a ser centrais para o novo presidente do Conselho, embora já de forma diversa da noção imperial salazarista. A posição de Caetano era a de que a presença portuguesa em África constituía um «facto legítimo» e que a solução para Portugal passava pela «construção efectiva duma sociedade de pretos e brancos» que convivessem «pacificamente», caminhando para o que chamou de «crescente autonomia das províncias ultramarinas». Durante o período marcelista, a chamada cultura juvenil, mais ou menos politizada, passava crescentemente a incluir recusa da guerra colonial e da política do governo. Este tipo de radicalização política também atingiu crescentemente alguns católicos, que, no final de 1968, cumpriram, numa vigília, a consigna papal de comemorar o dia 1 de Janeiro como Dia Mundial da Paz, voltando a desencadear uma acção desse tipo, na passagem do ano de 1972 a 1973.

Salazar viria a morrer em 27 de Julho de 1970, já sem ver o Papa Paulo VI desautorizar toda a sua política colonial, ao receber, no princípio do mês, numa audiência especial, os dirigentes do MPLA, da FRELIMO e do PAIGC. Por essa altura, num Portugal cada vez mais isolado diplomaticamente, a pedra de toque no seio das diversas oposições portuguesas era a forma como se lidava com a guerra, defendendo os grupos mais radicais à esquerda a deserção dos jovens mobilizados. E o certo é que não mais deixou de aumentar progressivamente o número de refractários e desertores, que, segundo números oficiais divulgados em Maio de 1974, teriam chegado a atingir, durante os treze anos de guerra, entre cerca de 110 a 170.000.

Ao chegar-se a este ano, já eram 150.000 os soldados mobilizados e as despesas com a «Defesa» constituíam 37% dos gastos do Estado. A guerra colonial durava há já treze anos em Angola, onze na Guiné e dez em Moçambique e sorvia entre 7 a 10% da população portuguesa e mais de 90% da juventude masculina. Durante os treze anos de guerra, morreram mais de oito mil homens e ficaram feridos ou incapacitados cerca de cem mil portugueses. Os mortos africanos terão chegado aos cem mil e o número de feridos terá sido certamente muito superior. Nesse ano de 1974, a intervenção estudantil e a movimentação laboral erguiam-se contra o regime e as guerras coloniais, ao mesmo tempo que germinava noutro meio – o militar – a semente de uma revolta que iria eclodir, no dia 25 de Abril, derrubando o regime ditatorial e, para terminar a prazo com a guerra.

Dos trágicos acontecimentos relacionados com as guerras coloniais travadas em África pelo regime ditatorial de Salazar e Caetano, entre 1961 e 1974, que tão profundamente e traumaticamente marcaram directa ou indirectamente a população portuguesa, esperar-se-ia que subsistisse um poderoso movimento de memória e uma abundante História, expressa em trabalhos de carácter ensaístico, literário e artístico. Como se sabe, isso ainda não tem ocorrido, parecendo que o passado da guerra colonial tem relutância em passar. Habitualmente, podem surgir relativamente a momentos traumáticos do passado, duas atitudes, ambas negativas: por um lado, a «míngua de memória» e, por outro lado, o «excesso de memória». Para ultrapassar estas duas atitudes negativas e dominar tanto a arte de esquecer como a arte da memória, o filósofo Paul Ricoeur sugeriu que se fizesse um «trabalho da memória». Aparentando-se com o «trabalho de luto», esse «trabalho da memória», que tanto pode ser de carácter historiográfico, como artístico ou literário, está agora paulatinamente a ser feito, embora de forma ténue.

Mas, já passados mais de 40 anos sobre o 25 de Abril de 1974 e sobre as independências das colónias portuguesas, continua a ser pioneiro e quase único o trabalho de memória e de história levado a cabo de forma exaustiva e rigorosa por Joaquim Furtado. Sem recear enfrentar tabus, através desta série de documentários que constituem um verdadeiro serviço público, intitulou muito justamente a sua obra com três adjectivos ou substantivos – colonial, do Ultramar, de libertação –, expressando assim as divisões que ainda hoje subsistem na sociedade portuguesa relativamente ao tema da guerra colonial. Por razões profissionais mas também enquanto cidadã que, pertencendo à geração que a viveu e contra a qual se opôs, eu não me canso de visualizar, descobrindo sempre novidades, os documentários de Joaquim Furtado, sabendo que, para muitos, eles salvam dos traumas provocados pela guerra. É que fazer a História e contribuir para a sua memória, pode curar traumas deixados pelas guerras coloniais – é assim que eu lhes chamo – que ainda hoje atinge muitos ex-combatentes e as suas famílias.

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