Homem trágico a correr para o ridículo

Só o grotesco dá a totalidade da experiência humana, diz-nos o cineasta Bruno Dumont. O trágico não chega. Ma Loute, história de burgueses e proletários, de incesto e antropofagia, chega às salas dia 20. É uma epopeia. Eis o homem.

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Bruno Dumont está sempre à espera de ver as estrelas, Fabrice Luchini, Juliette Binoche e Valeria Bruni-Tedeschi, cair. Deu-lhes imbecilidades várias como diálogos, lugares-comuns adornados com preciosismos e gestualidade de teatro de boulevard, jogos para os dedos, tiques para a boca, etc..., a ver quando é que se estatelam com o exagero. Várias vezes dá um empurrão — Valeria, por exemplo, cai logo nos seus primeiros minutos no ecrã.

Fabrice, Juliette e Valeria, actores, vedetas, espécie educada, polida, são os Van Peteghem: uma família burguesa do Norte de França do início do século XX, com as suas alianças industriais, incesto e impotência (“C’est le capitalisme!”, exclama Luchini). Figuras atarantadas pelo medo, estão enfraquecidos pela endogamia — é o fim. É a classe proletária que os carrega ao colo — mas isso não leva os mais pobres ao paraíso.

Conhecemos, então, os Brufort, pescadores, grupo rugoso, inamovível, interpretado por não actores que têm pouco texto para os enfraquecer — mas é família também com segredos: são antropófagos. É desse grupo aquele que é conhecido como “Ma Loute”.

Mesmo que haja intervalos de graça, uma história de amor impossível entre jovens dos dois clãs,  Ma Loute Brufort (Brandon Lavieville) e Billie Van Peteghem (Raph), e algumas levitações com que as personagens de Dumont se libertam do peso do mundo, a história é de não reconciliação — os profissionais de um lado, os amadores de outro? — e é fácil perceber, não é spoiler, quem é que está a comer quem.

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“É interessante: os actores profissionais ficam incomodados com a presença dos actores não profissionais” — Dumont, cientista, oferece de forma serena o resultado da sua verificação. “Perturba-os, porque sentem muito bem que há algo de extraordinário ali e tentam contrariar isso. Mesmo no plateau é espantoso verificar como todos estavam intimidados uns com os outros: os não profissionais estavam fascinados porque viam Luchini e não imaginavam que ‘Luchini fosse assim...’ e esse tipo de parvoíces... E Luchini, da mesma forma, via que o amador é justo, que há nele um jogo extraordinário e isso perturba o profissional. O profissional tenta inventar uma justeza, é essa a beleza do seu métier: aceder à justeza. O não profissional é justo.”

O irreconciliável, o escândalo

Ma Loute, que chega às salas portuguesas no dia 20, começa por ser, então, a explicitação, entrando adentro pela construção do filme e pela sua ficção, de algo de irreconciliável, de um desconforto violento que está na génese do cinema de Dumont, que é a sua ontologia, desde o seu primeiro embate mediático.

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Bruno Dumont e a estrela: “Juliette Binoche é um ícone, tem aura, é isso que me interessa. É fascinante é o poder de atracção de Juliette. Ela está completamente obrigada a isso e é até perturbada por isso” Pascal Le Segretain/Getty Images

Recorde-se 1999, Festival de Cannes, palmarés do júri presidido por David Cronenberg: L’Humanité, de Dumont, recebeu o Prémio do Júri e os prémios de interpretação masculina (Emmanuel Schotté) e feminina — atribuído a Séverine Caneele, ex aequo com Émilie Dequenne por Rosetta, dos Dardenne, que foi a Palma de Ouro. Na sala, assobios, os profissionais chocados com os prémios a (ainda) não profissionais — assustados com a invasão proletária a que Cronenberg (Long live the new flesh!) expunha Cannes.

A cerimónia ficará na lista das mais polémicas, ao lado da de 1987 (Maurice Pialat de punho no ar, “Si vous ne m’aimez pas, je peux vous dire que je ne vous aime non plus”, Palma de Ouro a Sous le Soleil de Satan), da de 1991 (Barton Fink ficou com os prémios principais — Palma de Ouro, Prémio de Realização, prémio de interpretação para John Turturro —, cúmulo que a partir daí passou a ser proibido pelos regulamentos do festival) ou da de 1994, com Quentin Tarantino de dedo do meio espetado a responder a quem vaiava a Palma de Ouro a Pulp Fiction.

A polémica continuou na imprensa, luta de classes que indignou Dumont pela falta de classe nas observações sobre os (não?) actores. Hoje o que se pode dizer é que esse foi um dos mais corajosos palmarés da história do festival, foi até visionário, não disposto a comprometer-se com o consenso. 

“Os festivais são organizados por profissionais, os profissionais recompensam-se uns aos outros. Forçosamente, quando não se faz parte da família, é-se mal vindo.” É assim que o realizador se recorda de Cannes 1999.

Ma Loute tem essa atitude bravia e dispõe-se a experimentar com isso, a ver o que acontece — arriscando também que assistamos a um filme a cair. Com ele o realizador regressou a Cannes, à competição de 2016, e chegou a ser equacionado o seu estatuto como filme de abertura — são revelações recentes, das páginas de Sélection Officiel, “diários” do director artístico do festival, Thierry Frémaux, que depois acabaria por escolher Café Society, de Woody Allen.

Este Dumont era obviamente um outro, diferente do de 1999: trazia estrelas na bagagem, sobretudo. E vinha depois de uma série televisiva de sucesso, O Pequeno Quinquin (2014) — vista na Arte por 1,5 milhões de espectadores e depois lançada em sala —, em que um cineasta de formação filosófica, nascido em Bailleul, cidade do Norte de França, entre Lille e Dunquerque, se mostrava cultor da comédia. Dessa forma renovou a sua metafísica, que andava empalidecida há vários títulos. Através dessa encomenda do canal televisivo Arte, uma revelação cómica agudizava, na horizontalidade das paisagens do Norte francês, o atordoamento das personagens.

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De um lado, uma família burguesa. Do outro, uma família de pescadores. São estes que se vão atirar àqueles, mesmo que haja uma possibilidade de graça que é o amor impossível entre dois jovens dos dois clãs
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Sobre as estrelas Ma Loute mostra que Dumont fica a ver o que (lhes) acontece. O que nos diz algo sobre a disponibilidade do filme para ser jeu de massacre. Oiçam-no:

“Estou mais interessado pelo vosso desejo de Juliette Binoche do que por Binoche. O que me fascina é a fascinação. É interessante a paixão dos espectadores pelos actores. Quando ando na rua com um actor, o fascínio das pessoas interessa-me. Gosto de Binoche e Luchini, mas o que me interessa é a aura. Os não pofissionais não têm aura alguma, zero. Mas a presença de Luchini é extraordinária. Basta ‘estar’ para criar relação com o público. As estrelas interessam-me, porque a conexão com o público me interessa. Juliette é um ícone, tem uma aura. Por isso fiz Camille Claudel 1915 (2013) com ela: Camille Claudel [escultora francesa, 1864 -1943] também tinha aura. Era preciso uma artista para fazer uma artista. É fascinante o poder de atracção de Juliette. Está completamente ligada a isso e é perturbada por isso: os actores têm personalidades bizarras. Essa conexão que têm com os espectadores perturba o seu ser. São seres que me tocam: estão no céu, como heróis, e são trágicos. Juliette é trágica, Luchini é trágico. São belos... mas psicologicamente, são personalidades complicadas.”

Sobre o humor talvez tenha sido inesperado o aparecimento de O Pequeno Quinquin. Mas não era a descoberta da pólvora para Dumont. O humor existia, subterrâneo, em L’Humanité. A série para a Arte estava cheia de ironia auto-referencial, aliás: era como se com ela Dumont pudesse regressar atrás para expor o que sempre estivera escondido, regressar aos primeiros filmes, L’Humanité e, antes dele, La Vie de Jesus (1997), para deles fazer um remake. O realizador concorda, aliás, com essa possibilidade de avançar por remakes, movimento mais em profundidade, para dentro do seu cinema.

“Há muito que queria fazer um filme cómico, não sabia era o quê, mas queria fazer. Mesmo quando fiz Camille Claudel ou Flandres (2006), embora não me visse na tradição do filme cómico francês. Esperei. A proposta da Arte foi decisiva.  Finalmente, decidi -me a transformar em comédia aquilo que eu próprio fazia, distorcendo o meu próprio cinema. Foi a oportunidade que me libertou. Quando vejo O Pequeno Quinquin, vejo o poder do cómico. Vejo que o humor não é apenas ligeiro e superficial, há algo de muito profundo nele. O humor é uma coisa grave — por exemplo, há uma cena em Camille Claudel, uma representação de Don Juan no hospital com os doentes. É potencialmente cómica, e era-o na rodagem. Mas ninguém se atrevia, nem eu... Quando fiz Ma Loute enriqueci-me com o cómico, para adensar o peso da nossa natureza. Penso que é preciso a gravidade da leveza para dar a totalidade da natureza humana. O dramático não é suficiente. Essa coexistência é extraordinária.”

A sociologia torna-se filosofia

Ma Loute esventra, então, mais a obra para deixar exposto o burlesco. Pegue-se na figura do polícia, que interessa ao realizador, porque é aquela que está, pela sua profissão, mais perto da manifestação do Mal e porque tem sido sujeita a um molde figurativo na ficção cinematográfica: começa por ter olhar esbugalhado, a latejar de crença, em L’Humanité, dá lugar a uma hesitação e dúvida em O Pequeno Quinquin (e por isso uma dupla cómica se esboça na série e os olhos piscam tanto) e agora, em Ma Loute, onde uma série de desaparecimentos vão adensando as nuvens que pairam sobre os Van Peteghem e os Brufort, os polícias já são Bucha & Estica, o gordo e o magro, não lhes resta nada a não ser caírem e levantarem-se, nada decifram do mundo. A sua levitação é uma grande e espectacular ajuda do mecanismo do burlesco cinematográfico — Dumont viu os filmes que tinha de ver —, mas as personagens não são confortadas pela dádiva da Graça.

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“Penso que é uma evolução. Quando se vê um escritor e um pintor, quer-se que ele mude.  Ao mesmo tempo, penso que existe uma relação entre L’Humanité e Ma Loute. Já havia humor em L’Humanité, só que não se notava. Mas havia coisas muito divertidas. O inspector de polícia de L’Humanité e os polícias de Ma Loute... é uma ampliação, é quase BD, mas é a ampliação de algo que já existia. O místico está lá, o humor está lá, o amor está lá, todos os temas estão lá, o que muda é a sua expressão. Quando falo de Ma Loute, falo do trágico-cómico: o filme não é trágico, o filme não é cómico, é os dois. Há um equilíbrio mais justo sobre a realidade que somos no grotesco. O grotesco equilibra o trágico. O grotesco faz parte da balança. O trágico está à beira do ridículo. O homem trágico está à beira do ridículo, e eu passo essa fronteira, é mesmo ao lado.”

Isto é uma forma de Dumont dizer o que já dissera por outras palavras — por exemplo, na apresentação de Ma Loute no Festival de Cannes, o ano passado: que o burlesco, ao fazer estilhaçar qualquer tentativa de sociologia, torna-se imediatamente filosofia.

“Não estou muito interessado na sociologia ou na história. A minha formação é a Filosofia. O princípio do cinema é a identificação. Penso que nos podemos identificar tanto com a família pobre como com a família rica. Estamos todos representados ali. O canibalismo dos pescadores é o nosso canibalismo. O incesto da família burguesa é o nosso incesto. O campo de identificação é enorme. A representação social é suficientemente maluca para não ser justa. Não há nenhuma realidade sociológica, são todos loucos. Viro depressa as costas ao real para Ma Loute não se tornar um filme sobre as classes. Há elementos suficientemente perturbadores para ir além disso e abraçar a totalidade das personagens por elas próprias, e não porque nos identificamos com a personagem burguesa, porque somos burgueses.”

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O trabalho sobre o humor e o burlesco: a figura do polícia em L’Humanité (1999), em O Pequeno Quinquin (2014) e em Ma Loute

Começámos esta conversa com Dumont por explicitar um programa, quase que se poderia dizer teórico, do filme: o confronto de classes sociais e artísticas, toda uma tradição do actor francês de prestígio e do texto a ser canibalizada por não profissionais... Há ainda o grande canibal que é o realizador, que não esconde que cada vez lhe interessa mais o passado para saber como é que se fazia e como é que se faz (René Clair, Vigo, Tati ou Pierre Étaix). Acrescem as suas investigações, que o levaram até ao grafismo dos postais do início do século XX (foi num deles que descobriu alguém chamado “Ma Loute”) e ao mundo da BD. O grande risco de Ma Loute, filme que vai à luta, mais interessado em ver como é que o cinema pode acontecer ali, em vez de se proteger do resultado, seria ficar imobilizado no seu mecanismo gráfico — uma higienização, “amelie-poulainização”, da metafísica. Não é isso o que lhe acontece.

Ma Loute participa da correria, do movimento: um movimento de perguntas e de anseios, que nunca chegam a encontrar respostas ou satisfação; um filme que dá a ouvir a possibilidade de canto, de epopeia, mesmo que a correria fique por chegar a lado algum — a grande finale para a aventura humana fica em silêncio. É um filme condoído. Não é o filme — acusação várias vezes feita a Dumont — de um misantropo. O realizador está visivelmente mais próximo dos Brufort do que dos Van Peteghema, e mais ligado afectivamente aos rostos que foi buscar ao Norte do que às estrelas do cinema francês, por quem experimenta sobretudo a curiosidade que se tem perante os fenómenos. Mas o espaço que dá a todas as personagens para elas revelarem a humanidade que extravasa dos tipos é construído com dedicação: fazendo-se ouvir o silêncio para além dos histrionismos. A sequência em que os Van Peteghema tomam o seu aperitivo e se vão desfazendo em caretas, quedas e incompetências várias, é significativa: como se ouvíssemos um eco, a paisagem, a paisagem silenciosa do Norte, vai tratando de corrigir a imagem, de complexificar o que vemos, de resgatar tudo à rigidez da caricatura. No cinema de Dumont, as paisagens falam, com o seu silêncio, de uma humanidade que não consegue, mesmo com golpes da Graça, contornar o Mal.

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“Os décors são muito importantes. Passamos os filmes a filmar décors. Sempre encontrei primeiro um sítio que me suscita uma história. Atribuo um lugar primordial à paisagem, porque a paisagem fala muito. É preciso escolher uma paisagem que esteja em conexão com a história.”

E concretiza acrescentando a sua experiência com o próximo filme, já rodado, de novo um desafio da Arte, antes de regressar, por proposta do canal, a O Pequeno Quinquin: chama-se Jeannette, l’enfance de Jeanne d’Arc, é um musical  sobre a infância da donzela de Domrémy, na Lorena. Os ambientes musicais serão de electro pop, as coreografias de Philippe Découflé.

“Jeanne nasceu na Lorena, Nordeste de França, eu filmei no Norte. Adaptei os décors de Ma Loute a Jeannette, l’enfance de Jeanne d’Arc. Este erro topográfico não me incomoda, porque as paisagens do Norte e os actores do Norte constituem a matriz necessária para dizer Jeanne d’Arc. Até porque não conheço a Lorena. O Norte é importante: tenho de estar ligado a uma paisagem e às suas pessoas. Trabalho com uma paisagem, e com as pessoas que vivem nessa paisagem. Jeanne d’Arc é uma miúda de oito anos que habita em Calais. O filme é uma comédia musical, foi preciso encontrar alguém que soubesse cantar, que fosse pequena e que tivesse uma maturidade espiritual que a fizesse ter luz nos olhos. Mas talvez haja uma Jeanne d’Arc em cada rapariga — havia, melhor ou pior, em todas as raparigas que vi no casting. É universal Jeanne d’Arc e simultaneamente enraizada na cultura francesa e na cultura feminina. É alguém que parte da realidade social mais simples e vai em direcção ao místico mais elevado e trágico. O meu cenário é Calais. Quando se visita um país, encontra-se uma relação entre as pessoas desse país e uma paisagem; é uma coisa misteriosa, é uma harmonia misteriosa a pertença, é difícil de explicar. Por isso é importante para mim encontrar actores locais. Mas quando se vê o filme sobre Jeanne d’Arc, para todos os efeitos será a Lorena. É essa a magia do cinema. Acreditamos.  A ficção atravessa tudo, faz com que tudo se transforme naturalmente. Por isso quando se vê Binoche, vê-se Camille Claudel: é fazer alguma coisa com outra coisa.”

Está diferente Bruno Dumont. Antes, as suas respostas à imprensa eram muito curtas e protegidas... “Têm razão, fui eu que mudei. Sou capaz de mais fantasia hoje. É normal. Começamos por ser muito sérios e há mudanças na personalidade. E porque mudei, sou capaz de me aventurar por outros registos no cinema. Tenho maior ironia sobre mim próprio, sobre o meu métier, sobre os meus filmes... E sobre o lado demasiado sério das vossas questões.”

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No cinema de Dumont, as paisagens falam, com o seu silêncio, de uma humanidade que não consegue, mesmo com golpes da Graça, contornar o Mal
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