Adiar o mal

Pensar que o trauma universal causado pela Segunda Guerra Mundial é suficiente para evitar novos conflitos é infelizmente apenas um elemento de wishful thinking.

1. Provavelmente a única coisa menos má no processo de saída do Reino Unido da União Europeia tem sido o facto de permitir recordar de forma mais intensa a grande virtude deste projecto único de integração politica e económica: a manutenção de uma paz duradoura na Europa. Entre 1945 e 2017 nenhuma das potências da região – ou os seus satélites – se envolveu em conflitos entre si, contrariando uma longa história europeia de conflito e mortandade, plena de rivalidades políticas, nacionalistas e religiosas. Mesmo a dramática situação dos Balcãs na década de 1990 foi fortemente contida e sublimada em virtude dos processos de adesão à União.

Só por si este objectivo e este resultado mais do que justificam apelidar a actual União Europeia de sucesso único no mundo. Num continente minado pela sua própria história e pela instrumentalização das suas memórias, as fronteiras revelaram-se sempre uma fonte de conflitos. Umas vezes fronteiras, muito frequentemente trincheiras. Assim, desvalorizar a União Europeia e a sua relevância na estabilização de uma região é pura e simplesmente aderir a uma simples conjuntura com o mesmo entusiasmo suicida com que gerações de europeus antes de nós o fizeram, enquanto marchavam de arma ao ombro...

2. Pensar que o trauma universal causado pela Segunda Guerra Mundial é suficiente para evitar novos conflitos é infelizmente apenas um elemento de wishful thinking. A Primeira Guerra deixou igualmente uma marca que se esperava eterna e foi o que se viu passadas apenas duas décadas. Nas vésperas da Segunda Guerra ninguém imaginava que a Alemanha, pátria de cultura, ciência e desenvolvimento tecnológico, se erigisse novamente contra os seus pares europeus. Afinal a Europa – e especialmente alguma Europa – era a terra das gentes civilizadas, submetida apenas à verdade científica e pronta a dar lições a todo o mundo bárbaro à sua volta.

A nossa Europa do século XXI não adquiriu infelizmente nenhuma imunidade civilizacional perante o mal. Ao contrário, aliás, do que ela própria acreditou em diversos momentos anteriores. Apenas o podemos adiar, de forma mais ou menos eficaz. E a União Europeia foi a forma mais eficaz encontrada até hoje.

3. A saída do Reino Unido da União Europeia parece fundamentar-se nos mais perigosos argumentos, que talvez se possam sintetizar em dois: a ideia de uma especialidade britânica e a luta legítima contra um direito injusto. Ou seja, a visão de que o Reino Unido é tão único que não admite pares ao seu lado; e, em decorrência, a de que o direito criado pela União Europeia é um sufoco inadmissível para aquela comunidade livre e única, agora em vias de se libertar, independentemente de sempre ter participado na definição desse direito. Nesta perspectiva, a saída da União é portanto um aparente processo feliz de resistência à tirania e de desobediência à injustiça, a favor do reconhecimento da unicidade, que nenhum argumento económico ou financeiro pôde conter na campanha antes do referendo.

A posição única do Reino Unido em diversas matérias ainda no contexto da União já o antecipava, aliás. Desde logo em matéria de fronteiras, segurança ou justiça, onde os britânicos praticamente escolhiam no que queriam participar das regras europeias. Ironicamente, o Tratado de Lisboa, entrado em vigor em 2009 e inequivocamente então celebrado como um claro aprofundar da integração política (e da integração nas decisões políticas), uma década depois fará a sua primeira vítima. Nada afinal que a rejeição da Constituição europeia em 2005 não anunciasse também.

Apesar da ideia sempre apelativa de auto-determinação, o mais arriscado neste "Brexit" é assim o sucesso que agora um argumentário estruturalmente xenófobo atingiu, mesmo que mal disfarçado da tal especialidade britânica, e submetido a uma escolha democrática. Ser único não significa necessariamente estar só. A não ser que seja essa a escolha. E, normalmente, o princípio dos problemas.

PS – No texto original publicado na semana passada e entretanto corrigido, listei, por lapso, a Autoridade da Concorrência entre diversas entidades que poderiam legalmente efectuar intercepções telefónicas. Apesar de poder efectuar buscas e apreensões, aquela possibilidade não se integra nas ferramentas investigatórias ao dispor da Autoridade da Concorrência, pelo que assinalo a rectificação e apresento à entidade visada e aos leitores do PÚBLICO o meu pedido de desculpas pelo erro.

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