Felwine Sarr na luta pela representação de África

Os africanos devem dominar a narrativa sobre si próprios e definirem os termos em que as suas instituições e economia operam. O economista senegalês vem ao Teatro Maria Matos, em Lisboa, falar de Afrotopia. Nem afropessimista, nem afroeufórico: Felwine Sarr é afro-realista.

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Felwin Sarr organizou em Dacar os Ateliers de la Pensée, onde reuniu pensadores africanos da diáspora Elise Duval

No ano passado, o economista senegalês Felwine Sarr (n.1972) organizou os Ateliers de La Pensée, um espaço de reflexão em forma de workshops que juntou dezenas de pensadores em Dakar e Saint-Louis. Co-criados com o filósofo e referência do pensamento pós-colonial, o camaronês Achille Mbembe, os Ateliers foram um enorme sucesso e irão repetir-se este ano, em Novembro, conta ao PÚBLICO por telefone. “Nestes últimos anos houve um renascimento dos artistas africanos. Os africanos não estão muito envolvidos na produção do discurso sobre eles próprios, com os Ateliers a ideia era reunir intelectuais africanos e da diáspora e pensar o papel de África no mundo, como olhar para o futuro”, explica. 

O economista, músico, teórico, chega a Portugal na próxima semana, dia 19 de Abril, para uma conferência sobre África, capitalismo e utopias no Teatro Maria Matos, em Lisboa, integrada no Ciclo Utopias. Reclama para África, à qual se refere como uma entidade continental, uma especificidade própria. Defende que é hora de os africanos fazerem uma auto-reflexão, pensarem nas suas soluções e tornarem-se menos vulneráveis às influências exteriores veiculadas em nome de um interesse que não é necessariamente o seu. “O comércio (deportação) transatlântico e o colonialismo foram sinónimos de extracção de riquezas e de ser humanos, de desestruturação das sociedades, de distorções institucionais, de violação cultural, de alienação e de inscrição das sociedades dominadas em trajectórias pouco virtuosas”, escreve no livro. Esta é a herança com a qual os países africanos têm de viver. 

Professor na Universidade Gaston Berger de Saint-Louis, e director do departamento de Civilizações, Religiões, Arte e Comunicação da mesma universidade, Felwine Sarr é autor de DAHIJ (2009), 105 Rue Carnot (2011), Médiations Africaines (2012) e Afrotopia (2016). É sobre este último livro que vem falar e foi sobre ele que se debruçou a entrevista de cerca de 40 minutos.  

Para contextualizar, cite-se um excerto de Afrotopias: “África é um continente que tem uma superfície de 30 milhões de quilómetros quadrados, composto por 54 Estados. Cabem nela os Estados Unidos, a China, a Índia e uma parte da Europa Ocidental. Com uma população de cerca de mil milhões de indivíduos, e uma taxa de crescimento demográfico de 2,6%, daqui a meio século será o continente mais povoado, com 2,2 mil milhões de habitantes, representando um quarto da população mundial. (…) Desde 2000, o seu crescimento económico é superior a 5%. Entre as mais altas taxas de crescimento do mundo de 2008 a 2013, os países africanos estão bem representados.” Escreve ainda: “As economias africanas descolariam, se funcionassem com os seus verdadeiros motores.” 

Felwine Sarr também escreve, no livro, que a “Afrotopia é uma utopia activa que procura no real africano os diversos espaços do possível e os fecunda”. Não defende nem o afro-pessimismo (que olha para o continente como estando à deriva), nem o afro-euforismo (que olha para África como o futuro económico). Qual será o lugar de um afrotópico? “O realismo”, responde.

No livro fala do facto de África estar marcada pela representação feita a partir do exterior. Como é que essa imagem foi distorcida?
Isso acontece desde os tempos do colonialismo em que é o Ocidente a definir África. África agrega essas definições que são feitas e incorpora-as, mas na verdade tem uma longa história em que pode pensar a sociedade, a vida, a história, o seu presente e decidir que tipo de futuro quer. Temos que ser nós a definir que tipo de sociedade queremos. 

E nesse sentido, o que é exactamente a luta pela representação de África?
É muito importante lutar pela representação justa de África. Se em África não se acredita que é possível melhorar, e tem que se ir para o Ocidente porque aqui não há futuro, então é porque a representação é muito má. Como as pessoas se vêem a elas mesmas através desta representação? Para construir o seu presente e o seu futuro têm que ter confiança em si próprias. Mas há um preconceito em relação a África, sempre vista através da lente do conflito, do que é negativo, e não da parte positiva da resiliência dos africanos, da riqueza da sua civilização, da sua criatividade na forma de resolver os problemas. 

Passados mais de 50 anos sobre a descolonização da maior parte dos países africanos (ocorridas no início dos anos 1960, não sendo o caso das colónias portuguesas), o seu livro ainda debate a necessidade de descolonização em várias áreas, incluindo das mentalidades. O que é que correu mal neste processo?
A descolonização não é apenas territorial e não acaba com as independências dos países, é um processo. O mais importante é a descolonização intelectual, psicológica, do conhecimento. Foram feitos progressos nas universidades, alguns académicos estão a pensar em como descolonizar o conhecimento e as linguagens mas isto é algo que acontece a longo prazo e para o qual se tem de olhar cuidadosamente. São precisas novas relações, mais justas e respeitadoras.

(A maioria dos) países africanos são antigas colónias, e as relações económicas, políticas e culturais continuam a existir com os países ocidentais. As ideias e decisões políticas não são tão livres como deveriam ser: são definidas pelas Banco Mundial, pelo Fundo Monetário Internacional, por políticos e por grandes empresas que têm interesse em África. Não podemos dizer que as relações são justas e simétricas, não são, há muito trabalho para fazer. Se for a algum dos países africanos, as grandes companhias que exploram os recursos naturais são internacionais. E retiram esses recursos porque têm tecnologia que nós não temos, em todas as áreas, das telecomunicações às minas, ao petróleo. Os nossos governos, por sua vez, também são influenciados pelas políticas do Banco Mundial e do FMI, pelos políticos do Norte na forma de governarem as suas sociedades. 

Fala da necessidade de os africanos adquirirem a sua autonomia e de recuperarem as suas esferas políticas. Como se consegue isto?
As sociedades africanas têm conhecimento local em várias esferas, do social, ao psicológico, até à saúde e basearam grande parte da sua sabedoria neste tipo de conhecimento que pode ser ensinado ao mesmo nível do conhecimento ocidental, articulando-os. Na minha universidade temos exemplos disso com o departamento de Cultura Africana, Civilização e Línguas, o Departamento de História.

Também defende que o ensino deve ser feito em línguas locais e que se deve, no fundo, acabar com o domínio das línguas ocidentais. Como é que depois se asseguraria a circulação do pensamento num continente em que há tantas línguas nacionais?
Há duas mil línguas em África, mais ou menos. Pode-se trabalhar a um nível trans-regional. Mas se pensarmos, há línguas que são faladas em vários países. Podem-se escolher algumas línguas transnacionais, e trabalhar nelas. O número de línguas não é um problema, o problema é a vontade política: há muitos lugares no mundo em que é a política que decide investir na língua. Quando um africano cresce, aprende a falar numa língua nativa; quando vai para a escola, aprende noutra, é um choque.

Diz que os instrumentos para medir as performances económicas em Produto Interno Bruto (PIB coloca os países africanos em situação de desigualdade e de subalternidade. Como é que a economia informal que predomina em África pode ser incluída nesta equação?
O problema da economia informal é que não é incluída nas estatísticas, e quando se mede o PIB perde-se esta grande parte da economia. Esta economia produz riqueza, outras formas de economia, e temos que olhá-la com outros olhos, tentando capturar indicadores que meçam este tipo. Alguns países estão a tentar ter estatísticas da economia informal, outros, como o asiático Butão encontram índices que incluem a medição do bem-estar.  

Há críticas fortes no seu livro à ajuda internacional e à presença de organizações não-governamentais (ONG) em África. Em que é que são negativas?
As ajudas das ONG podem ser feitas com boa intenção, mas nem todas têm a preocupação de perceber quais as necessidades reais de África. Algumas têm ideias do que é Africa e agem de forma diferente daquela que foi acordada com os respectivos governos, seguem as suas agendas e não trazem grande coisa. São os governos que devem decidir o que é bom para eles e não as ONG’s internacionais, algumas muito poderosas. Por exemplo, no Ruanda o Governo define quais as áreas em que as ONG’s intervêm e todos os anos escrutinam-nas para saber se cumpriram o plano - se não o fizeram, saem do país. O mais importante é saber se as ONG’s são agentes de transformação. Se agirem de acordo com o interesse do país, podem ser úteis. As soluções têm que ser produzidas localmente, se não, o problema pode agravar-se. Não é preciso recusar a ajuda mas apenas organizá-la de forma a que seja útil.

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