Há hospitais onde ainda se espera três anos por uma consulta

Mais de 150 mil pessoas já escolheram ir para outro hospital para não terem de aguardar tanto tempo. Ministério quer diminuir prazo máximo de espera de cinco para quatro meses.

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O Governo quer reduzir para quatro meses o tempo máximo de espera por uma consulta Rui Gaudêncio (arquivo)

Aguardar por uma primeira consulta de especialidade nos hospitais públicos continua a ser desesperante em muitos casos. A situação está a melhorar mas, quase uma década depois de o sistema Consulta a Tempo e Horas (CTH) ter arrancado, ainda há vários hospitais e diversas especialidades em que, para se ser atendido, é necessário esperar mais de um, dois e até três anos. São casos extremos, mas continuam a ocorrer, a crer nos dados do Portal da Saúde.

A lei estipula que 150 dias é o prazo máximo para uma primeira consulta de especialidade hospitalar não urgente. São cerca de cinco meses, limite que a tutela está já a pensar diminuir para apenas quatro meses (120 dias), adiantou ao PÚBLICO Ricardo Mestre, vogal do conselho directivo da Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS), sublinhando que a situação está genericamente a progredir e a lista de espera baixou mais de 20%.

Apesar disso, a percentagem de pessoas atendidas fora dos prazos máximos previstos na lei piorou em 2016. Passou de 25,9%, em 2015, para 28,5%, no ano passado. Ricardo Mestre explica que se tratou de um efeito temporário e que houve, de facto, uma melhoria. O certo é que a CTH, sistema que permite aos médicos de família marcar directamente primeiras consultas de especialidade hospitalar, e que estabeleceu prazos máximos para o atendimento (além dos 150 dias para consultas não urgentes, 30 dias para as muito prioritárias e 60 dias para as prioritárias), continua a deixar sem resposta atempada mais de um quarto dos doentes.

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Mas há especialidades e hospitais em que a situação é substancialmente pior do que a média nacional. É o caso da dermato-venerologia (ou dermatologia, em linguagem popular), da oftalmologia, da ortopedia, da otorrinolaringologia e da urologia, entre outras.

No início deste ano, foi notícia a longa espera de um homem que, cansado de esperar há dois anos e meio por uma consulta de urologia no Hospital de Viseu, contou a um jornal local que a unidade o avisara que teria ainda de aguardar porque estavam a recuperar pedidos antigos, de 2012. O administrador do hospital explicou ao Diário de Viseu que tinha sido um erro de triagem e que a espera de urologia não era de cinco anos mas sim de um ano e meio, por não haver especialistas em número suficiente nem interessados em candidatar-se aos concursos. No Portal da Saúde, uma consulta de urologia demorava mais de três anos, segundo os últimos dados.

O problema repete-se em vários hospitais. O Centro Hospitalar do Algarve, por exemplo, tem apenas dois dermatologistas para toda a região. O Hospital da Guarda debate-se com tempos de espera enormes em cardiologia (799 dias) e ortopedia, entre outras especialidades. Há "falta de recursos humanos" nestas áreas e dificuldade em "fixar especialistas" na Unidade Local de Saúde, explica o director clínico Gil Barreiros, via e-mail. A solução de recurso é ir contratando médicos a empresas de prestação de serviços. "Este problema é transversal" aos hospitais "instalados em zonas de baixa densidade demográfica", observa o director clínico, que diz que a unidade está "sempre ‘à caça’ de especialistas".

150 mil escolheram outro hospital

Exceptuando estes casos extremos, a situação está a melhorar, assevera Ricardo Mestre. A explicação para o aparente paradoxo do agravamento da percentagem dos utentes atendidos fora de prazo em 2016 é simples: foi um efeito perverso do processo de recuperação dos casos mais atrasados, alega. "Durante 2016 fizemos um trabalho importante, em conjunto com os hospitais, de recuperação de listas de espera e de pedidos que aguardavam há mais tempo. Limpámos o mais possível esses pedidos", recorda. As consultas via CHT até "aumentaram 3%" no ano passado e os pedidos em lista de espera no final de 2016 "diminuíram 20,7%", precisa.

Foi, assim, um “efeito de curto prazo” que entretanto já se inverteu no primeiro trimestre deste ano, acrescenta. Ricardo Mestre acredita que este indicador vai continuar a melhorar ao longo de 2017, fruto também do mecanismo de livre circulação que arrancou em meados do ano passado e das medidas que estão a ser "implementadas" nas especialidades com mais dificuldades de cumprimento dos prazos, como dermatologia e oftalmologia. Com o telerastreio dermatológico, exemplifica, o tempo médio de resposta é de 26 dias, "muitíssimo abaixo" das consultas convencionais.

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"Há muitas assimetrias entre regiões e especialidades, mas a situação tem melhorado ano após ano", reconhece Rui Nogueira, presidente da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar, para quem é necessário melhorar agora a comunicação e o sistema informático.

Entretanto, desde Julho passado, com a possibilidade de optar por outro hospital que não o da área de residência, 10,5% dos utentes — ou seja, "mais de 150 mil pessoas" — já escolheram um hospital diferente, revela. Agora, pretende-se ir mais além e começar a "acompanhar todo o trajecto do cidadão no sistema", passando a medir o tempo que os médicos levam a fazer o diagnóstico e a definir o plano terapêutico. Em breve serão também definidos prazos máximos para a espera por meios complementares de diagnóstico e terapêutica, como prometido pela tutela.

Diminuir o tempo máximo para 120 dias é "uma aposta corajosa", reage Alexandre Lourenço, presidente da Associação Portuguesa dos Administradores Hospitalares. As consultas de especialidade são uma das áreas em que os portugueses gastam muito dinheiro do seu bolso, por terem de optar pelo sector privado para não ficarem meses a fio à espera, destaca. A par da saúde oral, podem representar, nalguns casos, uma despesa "catastrófica" para as famílias com menores rendimentos. Se, por exemplo, uma criança é sinalizada na escola como tendo um problema oftalmológico, não pode ficar meses à espera de uma consulta, porque isso implica ter um problema de saúde que pode limitar toda a sua aprendizagem, exemplifica. "O atraso nas consultas de especialidade não é um problema deste ou de outro Governo", enfatiza. Os hospitais precisam de ter autonomia de gestão e de organizar-se de outra forma, por exemplo, criando "postos avançados, clínicas próximo das pessoas", sugere.

"A situação está melhor, este ministro tem mais sensibilidade para a defesa do Serviço Nacional de Saúde do que o anterior", defende Manuel Vilas Boas, do Movimento de Utentes do Serviço Nacional de Saúde, que crê, porém, que o grande problema é de ordem orçamental: "Sem mais dinheiro, vamos continuar a fazer remendos."

Manuel José Soares, porta-voz da Comissão de Utentes de Saúde do Médio Tejo, uma das regiões que em 2015 tinha maiores atrasos, acredita também que, no ano passado, foram tomadas "medidas muito sérias para aumentar a rentabilidade das consultas externas" no centro hospitalar da região (Abrantes, Tomar e Torres Novas). "Havia médicos que tinham dez consultas marcadas por dia e, como muita gente faltava, faziam só sete ou oito; agora passaram a ter 12", ilustra. Mas ainda há "problemas graves que é necessário ultrapassar", nota, frisando que há muita gente que continua a ir à urgência porque as consultas demoram. "É uma escapatória e é por isso que não há mais alarido."

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