Reféns de São Bento

O BE e o PCP sabem que se cortarem o apoio a Costa perdem a influência no poder e poderão ser penalizados nas urnas.

Primeiro estranha-se, depois entranha-se. Usei esta expressão como arranque de um texto em que analisei os seis primeiros meses do Governo de António Costa, publicado no PÚBLICO a 26 de Maio de 2016. Quase um ano depois, ela voltou à memória a propósito das reacções suscitadas por uma passagem da entrevista à Rádio Renascença, na terça-feira, em que o primeiro-ministro abordou mais uma vez a disponibilidade para reeditar a aliança parlamentar com o BE, o PCP e o PEV.

Pelo quase espanto com que alguns comentadores e analistas reagiram às declarações de Costa, é possível perceber como aquilo que não integra o universo das nossas possibilidades e expectativas acaba por ser lentamente assimilado. Reconheço que eu própria levei tempo a assimilar a disponibilidade de Costa para ser primeiro-ministro de um governo apoiado parlamentarmente pelos partidos à esquerda da bancada do PS. Não tanto por não ter percebido a estratégia de alianças que defendia, mas pelo facto de me ser estranho a constituição de um governo por parte de um partido que não tinha ganho eleições — algo inédito em Portugal até 26 de Novembro de 2015.

Costa não disse nada à Renascença que não venha repetindo há quase três anos: “Se nas próximas eleições tivermos maioria absoluta, acho que ainda assim seria útil manter este modelo, que melhorou o nível da democracia.” Só agora, porém, a maioria das pessoas assimila o seu discurso sobre estratégia de alianças que surge como novidade — ou seja, diz o mesmo que propunha já na moção com que se candidatou às eleições primárias de 28 de Setembro de 2014 para escolha do candidato socialista a primeiro-ministro, organizadas pelo então líder do PS, António José Seguro, quando foi desafiado na liderança. Uma estratégia de alianças que manteve nas eleições directas de 21 e 22 de Novembro de 2014, em que foi eleito secretário-geral, bem como no programa eleitoral às legislativas de 4 de Outubro de 2015.

Costa vem repetindo em versão copy & paste a ideia de que o PS rejeita um conceito de representação democrática chamado “arco da governação”, porque exclui partidos, e defende que todos os partidos devem ser obrigados a assumir responsabilidades nas soluções governativas. E se deu uma cambalhota programática foi em relação ao documento dos economistas cuja elaboração, coordenada por Mário Centeno, foi logo revista na questão central da baixa da TSU para os trabalhadores, por imposição interna do próprio PS.

É certo que Costa previa poder chamar o BE e o PCP a uma aliança de poder a partir do pódio eleitoral. Mas ao longo da campanha eleitoral, quer na evolução do seu discurso, quer nas notícias que saíam sobre o assunto, era notória a disponibilidade e a aposta de Costa em negociar uma aliança à esquerda. E, de facto, esta estratégia de alianças é aquela que mais lhe convém.

Expliquemos. O Governo tem governado sem sair um milímetro do seu programa. As concessões que fez à esquerda resultam sobretudo em acelerações dos timings das reposições, em negociações permanentes sobre a concretização de medidas. Mas nada do que foi aprovado sai do guião governativo apresentado na Agenda para a Década, das políticas sociais às laborais, passando, claro, pelas económicas e financeiras. Mais: o Governo não pôs nem põe em causa os compromissos com a Comissão Europeia, por mais que os aliados à esquerda os critiquem.

Por outro lado, o BE e o PCP podem espernear, manter a sua identidade ideológica para consumo do próprio eleitorado. Mas não se atrevem a pôr em causa a estratégia governativa do PS, nem a permitir que a oposição e crítica saiam para as ruas em protestos, manifestações ou greves. O BE e o PCP sabem que se cortarem o apoio a Costa não só perdem a influência no poder, como poderão também ser penalizados nas urnas. É este, aliás, o grande trunfo de Costa para defender a continuação desta solução: a percepção de que os seus aliados estão reféns de São Bento.

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