A um salto da igualdade

Nicola Thorp foi despedida do posto de secretária por não usar sapatos de salto alto. Criou uma petição que reuniu 138.500 assinaturas e o tema foi levado ao Parlamento britânico. A lei portuguesa protege o direito à igualdade de género no trabalho, mas há empresas que exigem regras diferentes.

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Havia um banco alto na entrada, mas não era para Joana (nome fictício) se sentar. O trabalho de hostess num restaurante sofisticado no centro de Lisboa exigia que estivesse de pé em saltos altos durante turnos de seis horas – por vezes mais –, quase sem interrupções, cinco vezes por semana. Sempre com um sorriso, já que a sua função era receber os clientes à porta.

No dia em que chegou à entrevista de emprego –  com uma T-shirt, blazer, calças de ganga e sabrinas – foi-lhe dito que “bastava estar um pouco como estava vestida, elegante”, mas rapidamente descobriu que não era esse o caso. “Por iniciativa própria, no primeiro dia levei uns saltos altos”, recorda. Apesar de estar habituada a usar saltos no dia-a-dia, até para a faculdade, era mais difícil fazê-lo durante horas seguidas sem ter a oportunidade de se sentar.

Recorda ainda os métodos que experimentou para persistir nas alturas: “borrachas nos sapatos, e palmilhas especiais”, por exemplo. Pouco tempo depois de começar a trocar os saltos pelas sabrinas a meio da noite e a aproveitar alguns tempos mortos para se sentar na cadeira, foi chamada à atenção. “O meu chefe de sala disse-me, de forma discreta, que não queria fazer um grande alarido sobre isso, mas que tinha mesmo de usar [saltos] porque [a gerência] já se tinha queixado que não era elegante e que não queria ter uma hostess a trabalhar assim”, conta. “Até aí nunca ninguém me tinha dito que não podia usar sapatos rasos e foi só mais tarde que me avisaram de que não me poderia sentar. Não podia fazer uma pausa, não me podia sentar – claro que podia ir à casa de banho”.

A gerência ainda chegou a oferecer-se para pagar uns novos sapatos, com um tacão mais baixo, caso trouxesse consigo o talão de compra, mas a situação tornou-se insustentável e Joana acabou por sair dois meses depois.

Nicola Thorp, residente em Londres, foi vítima de uma situação semelhante, em Dezembro de 2015 – um caso que gerou um debate alargado na sociedade, chegando inclusive a ser discutido no Parlamento do Reino Unido no mês passado.

Tudo começou quando a cidadã britânica, contratada como recepcionista pela PricewaterhouseCoopers (PwC), através da agência Portico, foi dispensada por recusar usar sapatos com salto alto. Apesar de se ter apresentado de fato e com um par de sapatos rasos formais, foi informada pelo gerente que teria de ir comprar um par de saltos altos ou então voltar para casa. “Pareceu-me bastante errado. Senti-me envergonhada. Tinha experienciado este tipo de situação antes e senti que já chegava”, contou mais tarde num ensaio escrito para o site do Today Show, da NBC.

Quando recusou cumprir a imposição, Thorp foi dispensada, mas não ficou parada em casa. A petição online que lançou – cujo título exigia “Make it illegal for a company to require women to wear high heels at work” (façam com que seja ilegal uma empresa exigir que as mulheres usem saltos altos no trabalho) – conseguiu reunir 138.500 assinaturas entre 9 de Maio e 9 de Novembro de 2016 – muito acima das 10.000 necessárias para garantir uma resposta oficial do Governo. Pouco depois, a Portico, empresa que fornece serviços de gestão de eventos e pessoal para diverdsas funções, decidiu rever as regras de apresentação, retirando requerimentos como o uso de saltos altos entre 5 e 10 centímetros. No regulamento que estava na altura em vigor, havia ainda exigências como “maquilhagem a toda a hora e regularmente aplicada, com, no mínimo, blush, batom ou gloss, rímel, sombra e base leve”, de acordo com o Guardian.

O comité das petições do Parlamento promoveu ainda um fórum online durante a segunda semana de Junho de 2016, para ouvir outras histórias de desigualdade de género no trabalho relacionados com as regras de apresentação. No total, receberam 730 respostas. “Ouvimos de mulheres que tinham sido obrigadas a pintar o cabelo de loiro, usar roupas reveladoras e constantemente reaplicar maquilhagem”, lê-se no relatório sobre o caso.

O Governo emitiu uma breve resposta à petição, declarando que o dress code das empresas têm de ter requerimentos idênticos para homens e mulheres, segundo aquilo que está escrito na lei, e mencionando ainda que já estava a trabalhar no sentido de remover barreiras à desigualdade – reduzindo as disparidades salariais e aumentando o número de mulheres nos quadros, por exemplo.

No início de Março de 2017, o tema foi levado à discussão no Parlamento. “Encontrámos atitudes que pertenciam mais aos anos 1850 do que ao século XXI”, disse Helen Jones, do partido Trabalhista e presidente do comité das petições, citada pelo Guardian. Ainda assim, não houve conclusões quanto a medidas práticas para a alteração à lei. Até porque, como apontou a ex-secretária de Estado para as Mulheres e Igualdade, Nicky Morgan, numa carta em resposta ao pedido de esclarecimento do comité de petições, o requerimento dos saltos altos imposto a Nicola Thorp já era ilegal, de acordo com o Equality Act de 2010, por tratar uma pessoa de forma desfavorável com base no sexo. Ou seja, para introduzir a alteração proposta na petição teria de ser revista uma lei que à partida já o proibia.

Ainda há medo de falar

De acordo com a lei portuguesa – que protege os trabalhadores de serem discriminados com base no sexo – tanto o caso de Nicola Thorp, como o de Joana representam infracções. Contudo, segundo diferentes entidades que trabalham para promover a igualdade de género, não existem actualmente queixas por parte de colaboradoras que indiquem que esta questão específica seja uma problemática real em Portugal.

A Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego (CITE) conta ao P2 que “não têm sido colocadas [à CITE] quaisquer queixas” de discriminação de género, “no que toca a regras de indumentária exigidas às funcionárias”. Das 397 queixas direccionadas a esta organização entre 2014 e 2016 (até 30 de Setembro), 216 estavam relacionadas com conciliação da vida profissional e vida familiar, 79 com igualdade e não discriminação em função do sexo (inclusive casos de assédio sexual e desigualdade salarial), 51 com a parentalidade e 51 com outros assuntos.

Já o último relatório de Actividades da Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT), relativo a 2015, indica que houve 267 advertências e 18 infracções autuadas por incumprimento de regras de igualdade e não discriminação, das quais apenas uma advertência (e nenhuma multa) resultou de questões relacionadas com igualdade de condições de trabalho. Nesse ano, as questões de género motivaram apenas 10% das 256 acções inspectivas pelos serviços da ACT no âmbito da igualdade e não discriminação no trabalho.

Numa declaração breve enviada por e-mail ao P2, também a Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género (CIG), confirma que “não tem, até ao momento, conhecimento de qualquer queixa sobre discriminação de género relacionada com regras de vestuário no meio laboral”. Até ao momento não efectuou, por isso, nenhuma acção nesse âmbito. A CIG não quis, no entanto, comentar a situação. O P2 tentou entrar em contacto com a presidente da União de Mulheres Alternativa e Resposta (UMAR), mas não obteve resposta. 

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Miguel Manso

Joana explica que o meio em Portugal – e concretamente em Lisboa – é muito pequeno e que os patrões “têm maneira de fazer com que uma pessoa não volte a trabalhar” – por essa mesma razão preferiu manter o anonimato. “Na altura falei com outras três ou quatro raparigas que estavam na mesma situação e que trabalhavam como hostess. Elas comentavam ser completamente insuportável usar sapatos tão altos todas as noites. Sentiam que aquilo que recebiam não era suficiente para ultrapassar os problemas que iriam ter mais tarde nos pés e na coluna.”

Já Maria João Corte-Real, estudante de Medicina, não teve problema em dar o nome. Trabalhou numa loja de roupa de bebés no Porto, onde atendia ao balcão. Apesar de não ter nenhum contrato assinado, a gerência fazia questão que trabalhasse bem maquilhada todos os dias. “Era chato e não era a única pessoa que não gostava, pelo facto de ter de ser todos os dias. Se não usasse era chamada à atenção”, conta.

Ainda assim, reconhece que estava numa posição relativamente confortável. “Não fiquei especialmente incomodada porque não estava numa situação de dependência. Ouvi aquilo e pensei que faria o que quisesse e que, se houvesse outro dia em que não me apetecesse, não iria usar outra vez [maquilhagem]”, acrescenta.

Símbolo da sexualização das mulheres

O caso de Nicola Thorp não tem apenas a ver com um par de sapatos – mais do que isso, é uma questão dos direitos das mulheres. “Há uma história por detrás dos saltos altos e um elemento sexual, ao contrário de uma camisa e gravata para os homens”, sublinha a britânica, em entrevista ao Daily Mail. “Os saltos altos são desenhados para sexualizar as mulheres. Alongam as nossas pernas, mudam a forma como andamos e, quer tenhamos a intenção ou não, tornam-nos mais atraentes para ambos os sexos”, escreve Harriet Minter, editora da secção de Mulheres na Liderança do Guardian.

Maria Duarte Bello, licenciada em Direito e especialista em coaching e gestão de imagem, considera importante ter em conta aquilo que é acordado no momento inicial, entre empregador e trabalhador. “Está completamente aceite o facto de a mulher poder usar um vestuário, à partida, masculino. Hoje até se caminha para estilos mais andróginos, em que os homens também têm silhuetas mais femininas. É um vestuário unissexo”, comenta.

Quando exigências por parte da empresa são extremas, como aconteceu com o caso de Nicola Throp, e uma mulher concorda com as mesmas à partida “está a aceitar ser discriminada”, diz.

Mais do que uma forma para projectar a imagem de uma empresa, o dress code profissional deve servir “para facilitar a comunicação e o relacionamento entre as pessoas”, garante Maria Duarte Bello. “É um sinal de pertença a uma determinada organização ou a uma determinada escola”.

Os cerca de 400 colaboradores da Cisco Portugal não têm de seguir nenhum conjunto de regras concretas quanto ao vestuário. “O dress code é, no fundo, o bom senso”, conta a directora-geral, Sofia Tenreiro. Ditar a forma como as pessoas se devem apresentar no ambiente profissional seria equivalente a ensinar regras básicas de educação. “Da mesma forma, não digo a ninguém que tem de cumprimentar as pessoas quando chega ao escritório”, explica.

Há porém uma expectativa por parte da empresa que os trabalhadores respeitem os seus valores e se apresentem de acordo com diferentes situações. Há “equipas que são mais formais por terem contacto com entidades externas”, exemplifica – mas “não obrigamos ninguém a usar uma peça de vestuário ou de calçado específico” e também “não encontramos abusos”.

Na Microsoft Portugal, o dress code aproxima-se mais do lado informal. “Não temos uma política rígida nesta área. Valorizamos a diversidade e cultivamos a inclusão e isto significa que os trabalhadores também se podem expressar através do vestuário”, garante a directora de recursos humanos, Dalia Turner, em resposta ao P2. Ressalva, ainda assim, que a situação é diferente para os colaboradores que trabalham junto a clientes: “nesses casos particulares, pedimos que respeitem as políticas das companhias que visitam”.

Os colaboradores de loja da Zara vestem uma farda simples, com calças e camisolas de cores sóbrias. Há um asterisco para as mulheres: devem apresentar-se maquilhadas e com batom encarnado. Quem o diz é uma estudante de Aveiro – que prefere não revelar a identidade –, que trabalhou numa das lojas da marca durante um mês. “Os rapazes não tinham tantas regras em termos de visual”, aponta.

Apesar de não ter por hábito maquilhar-se no dia-a-dia, garante que o passou a fazer sem hesitação. Encontrou mais dificuldades por causa do cabelo “grande e encaracolado”. Quando a sua superior a encontrou com o cabelo preso disse que parecia que "andava a arrumar a casa”. “Tira já isso do cabelo”, ordenou-lhe, chamando-a ao gabinete para explicar que “era uma das pessoas que davam a imagem da loja e que tinha de ter boa apresentação”.

Não era o primeiro aviso que tinha recebido, mas “as primeiras duas vezes foram meiguinhas, dizia para andar de cabelo solto, pois tinha um cabelo muito bonito”, lembra a jovem estudante. “O problema era que eu baixava-me e das duas uma: ou não conseguia ver o que estava a fazer, porque o cabelo ia para a frente dos olhos, ou então tinha de o amarrar. Muitas vezes fi-lo involuntariamente”.

No final do mês de experimentação, a estudante não conseguiu uma posição permanente na loja, mas acredita que não foi por causa destes episódios, mas sim pelo facto de que não tinha perfil para a secção de homem – a única onde havia uma vaga. “Realmente não era muito boa nisso. Tinha muito mais perfil para estar na secção de mulher ou de criança”, conta.

O P2 tentou entrar em contacto com o departamento de recursos humanos de empresas como a Inditex (detentora de marcas como a Zara e a Massimo Dutti), Mango, Millennium BCP e BPI para perceber quais os códigos que regem a forma como os seus colaboradores se apresentam, mas todas elas recusaram prestar declarações.

Distância entre vida privada e profissional

A fotografia que Laraine Cook – treinadora da equipa de basquetebol de raparigas de uma escola em Idaho, nos Estados Unidos – publicou nas férias, com um bikini preto, foi motivo para despedimento, em 2013, relata o Los Angeles Times. Já o seu noivo na altura, que era treinador da equipa de futebol na mesma escola e que, na imagem, tinha a mão pousada no seu peito, foi simplesmente repreendido. Ambos estavam vestidos com roupa de praia.

“Eles disseram-me que a fotografia tinha sido recebida no escritório distrital e pediram-me para escolher entre demitir-me ou ser despedida", disse Cook, citada pelo Idaho State Journal. "Disseram-me que o motivo pelo qual fui dispensada foi porque [a fotografia] tinha sido publicada no meu Facebook. No entanto, o nosso agrupamento escolar não tem nenhuma política acerca das redes sociais.”

Quanto à divisão entre a esfera privada e profissional – um tema relevante, já que existem vários casos de trabalhadoras despedidas pelas fotografias que escolhem partilhar nas redes sociais –, Sofia Tenreiro considera que a “fronteira é cada vez mais ténue”.

Tão facilmente se usa o horário de trabalho para tratar de temas pessoais, quanto o tempo livre para questões profissionais e, por isso, Sofia considera que “não podemos ter duas vidas: somos um todo, que tem uma componente pessoal e uma componente profissional, mas temos de ser coerentes”. “Não faz sentido porque terminei o meu horário de trabalho dizer mal da minha empresa nas redes sociais”, explica.

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