Os "anjos de Snowden" em Hong Kong foram abandonados pelo mundo

Acolheram o antigo espião da NSA antes de este ter apanhado o avião para Moscovo. Agora são procurados por Hong Kong e pelo Sri Lanka, o seu país de origem, de onde tinham fugido. Não se arrependem do que fizeram.

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Os "anjos de Snowden" acolheram-no em Hong Kong. Hoje estão eles escondidos Reuters/VICTOR FRAILE

Nunca lhes tinha passado pela cabeça que um toque tardio à sua porta numa noite de Verão de 2013 ia desencadear uma dramática cadeia de acontecimentos que acabaria por reescrever o curso das suas vidas. Quatro anos depois, enfrentando ameaças diárias e com o receido de uma deportação iminente, Supun Kellapatha e Nadeeka Nonis, ambos do Sri Lanka, dizem não se arrepender de ter aberto a porta. Estão contentes por ter acolhido aquele americano alto e nervoso no seu pequeno apartamento.

O estranho que lhes batia à porta era Edward Snowden, o antigo funcionário dos serviços de inteligência americanos que passou milhares de documentos classificados para jornalistas a partir de um quarto de hotel em Hong Kong.

Durante as duas semanas seguintes - conta o Quartz India desta segunda-feira -, enquanto as agências americanas lançavam uma caça ao homem à escala global, o dissidente mais querido do mundo alternava silenciosamente entre as casas de três famílias de refugiados nos mais pobres, sujos e abandonados guetos de Hong Kong, antes de embarcar para Moscovo.

Agora, as pessoas que acolheram Snowden estão elas próprias à procura de protecção. Enquanto os seus países tentam obter a sua extradição e permanecer em Hong Kong se torna inviável, as famílias estão a pedir asilo no Canadá com a ajuda de Robert Tibbo, advogado de direitos humanos que trouxe Snowden para a porta de Supun naquela noite de 2013.

“Nós pusemos Ed onde ninguém o iria procurar – num mundo escondido com gente que tem instinto para proteger”, diz Tibbo, que também representa os refugiados. Ele estava confiante que este grupo de pessoas, que tinha tanto a perder se Snowden fosse apanhado no seu meio, não o iria trair nem ao seu cliente de alto perfil. E não traíu.

Os refugiados – Kellapatha, Nonis e os dois filhos, Ajith Puspakumara, um antigo soldado também do Sri Lanka e as filipinas Vanessa Rodel e a sua filha – mantiveram a sua palavra e o seu silêncio até que, em 2016, o documentário Snowden, de Oliver Stone, revelou onde o fugitivo se escondeu enquanto esteve no submundo de Hong Kong. Tornou-se impossível manter os seus nomes secretos.

Ainda assim, eles permanecem reservados quando falam sobre Snowden, insistindo que não sabiam quem ele era quando o receberam, mas apenas que ele também era um refugiado – um homem ansioso fora do seu país, procurando abrigo.

“Bem cedo na manhã seguinte, tão cedo que ainda estava escuro, ele pediu-me para ir comprar o jornal”, recorda Kellapatha. “Eu nem sequer tinha olhado para ele até voltar e dar-lhe o jornal. Então, quando vi, fiquei chocado”. Tinha visto a fotografia na primeira página do The South China Morning Post e perguntou-lhe: “Edward, és tu?”. Ao perceber que sim, garantiu-lhe: “Não te preocupes, estás em segurança”.

Kellapatha deu-lhe o único colchão do seu apartamento de duas assoalhadas, enquanto a sua família ficou a dormir no chão. Preocupado com o que dar de comer a um ocidental, comprou-lhe esparguete e hamburgers com dinheiro dado pelo advogado. Afinal não tinham de se preocupar: Snowden gostava do frango de caril feito em casa. “E bolos”, acrescenta Nonis, com um raro sorriso: “Ele gosta muito de doces”.

Escondidos, à espera de asilo

Kellapatha e Nonis são refugiados que sofreram perseguição e tortura no Sri Lanka. Kellapatha, de 32 anos, foi para Hong Kong em 2005 para fugir do assédio – ele conta que foi torturado por opositores políticos.

Nadeeka, 33 anos, chegou em 2007. É uma ex-costureira que fugiu do Sri Lanka depois de anos de repetidas violações nas mãos de um homem politicamente poderoso. O casal conheceu-se em Hong Kong e tem dois filhos – uma menina de cinco anos e um rapaz bebé.

Tal como a filha de Rodel, são apátridas, porque as três crianças nasceram em Hong Kong enquanto o processo de asilo dos pais está pendente – o que pode demorar anos a resolver-se. Um desfecho positivo é difícil. Cerca de nove mil refugiados pediram asilo desde 2009 e Hong Kong apenas aprovou 52, o que equivale a uma taxa inferior a um por cento.

Enquanto Hong Kong não assinar a Convenção para os Refugiados das Nações Unidas, está dependente de uma decisão do tribunal de apelo final - que deve examinar os requerentes de asilo para determinar se eles correm o risco de perseguição. Se houver risco, serão referenciados ao Alto Comissário para os Refugiados das Nações Unidas para serem recolocados num país terceiro. 

Segundo Tibbo, os refugiados que acolheram Snowden estão a ficar sem tempo. Desde que os seus nomes se tornaram públicos, a sua vida nunca mais foi a mesma. Estão referenciados tanto pelos governos de Hong Kong como do Sri Lanka por terem ajudado à fuga do antigo espião. As autoridades do Sri Lanka, acrescenta o advogado, têm até assediado os familiares das famílias que procuram asilo em casa, exigindo saber o seu paradeiro em Hong Kong.

“É uma questão de vida ou morte”, diz Tibbo, afirmando haver provas de que oficiais de polícia do Sri Lanka foram a Hong Kong tentar encontrar os refugiados – uma alegação que o Sri Lanka nega. Se os refugiados forem forçados a regressar a casa, teme-se que enfrentem tortura violenta.

Em Hong Kong, eles mantém-se discretos. “Não vamos a lado nenhum, não falamos com ninguém. Eu digo à minha filha que não temos amigos, não temos amigo nenhum”, afirma Kellapatha. Nenhuma das crianças vai à escola desde Novembro porque dizem que os Serviços Sociais Internacionais, a agência governamental responsável pelo bem-estar dos requerentes de asilo, retiraram ajuda financeira, deixando os refugiados com apenas dinheiro suficiente para propinas ou para comida básica, roupas e transporte numa das cidades mais caras no mundo.

Eles não podem defender-se porque Hong Kong não permite que os requerentes de asilo trabalhem, estudem, se voluntariem ou até mesmo peçam dinheiro enquanto esperam que o governo determine seu status - um processo que pode levar mais de uma década.

Temos de levar as crianças onde quer que vamos, é como ter um animal de estimação: eles só ficam sentados, a comer ou a dormir. Que tipo de infância é esta?”, questiona Nonis, olhando para a filha que se deixou dormir numa cadeira do escritório de Tibbo.

As três famílias estão a viver em “casa seguras” organizadas pelos advogados e estão desesperadas para sair. Por seu lado, o advogado está a trabalhar com três causídicos canadianos que têm uma organização não-lucrativa para ajudar as famílias.

A 10 de Março, anunciaram que tinham pedido oficialmente ao Canadá para aceitar o seu pedido de asilo. No mesmo dia, as famílias receberam grande manifestação de apoio de Snowden, que escreveu no Twitter: “As famílias que me acolheram formalizaram o pedido de asilo ao Canadá. Vamos rezar para que o Canadá os proteja com gentileza”.

Entretanto, estão a ser recolhidos fundos online para os ajudar. Mas nenhum dos anjos de Snowden, como ficaram conhecidos, diz arrepender-se de ter arriscado a vida para o proteger. “Quando ele se foi embora, abraçou-nos”, diz Nonis. “Queriamos que ele tivesse ficado para sempre”.

“Eu não me arrependo de o ter ajudado. Ele disse-me que tudo o que fez, fez por ser a coisa certa”, afirma Kellapatha.

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