“Partidos portugueses têm conseguido integrar o que podia ser combustível para o populismo”

Susana Salgado, 42 anos, investigadora do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa trabalha há cinco anos sobre a comunicação política do populismo

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Susana Salgado lembra que “a ideia fundamental é que qualquer democracia deveria primeiro que tudo saber responder às necessidades do povo”

O objecto do estudo transformou-se, entretanto, no fenómeno político do momento, na Europa e nos EUA. Acelerada pelo rápido crescimento das redes sociais, a “comunicação directa com o povo”, velha aspiração dos populistas, tornou-se numa das armas da inesperada mudança política que abalou Washington e Londres. A rede europeia de que Susana Salgado é uma das coordenadoras lançou, há menos de um ano o livro Populist Political Communication in Europe (A comunicação política do populismo na Europa). E, entretanto, já muito se passou… Portugal é “um caso interessante”, mas nada garante que não venha a aparecer alguém que, falando “em nome do povo”, seja hábil “a ler o clima da opinião” e a usar os novos media para difundir uma mensagem simplista e cheia de “factos alternativos”.

Tinha alguma intuição de que o fenómeno que estudava se poderia vir a tornar num dos principais temas de debate, na Europa e nos EUA?
Tinha a noção que iria tornar-se mais saliente, mas com esta dimensão que tem hoje, especialmente depois da eleição de Trump (inesperada até para muitos analistas norte-americanos com os quais fui conversando durante a campanha), seria difícil de prever. Na Europa, para além da crise do euro, o agudizar da crise dos refugiados que contribuiu para alimentar o clima de medo na sociedade, e o crescente descontentamento com as elites políticas agravado pelos vários casos de escândalos de corrupção e de ligações aos interesses económicos, têm sido essenciais para o sucesso deste tipo de populismos. Porque existem também versões diferentes, outros tipos de populismo, como os mais “positivos”, que se definem pela maior inclusão do povo nas decisões políticas.

Consegue apontar um "momento-zero" nesta emergência do discurso populista alavancada pela utilização dos novos media?
É difícil apontar um único momento. Mas o facto de estes discursos alternativos sobre a sociedade e a política não conseguirem muitas vezes cobertura jornalística nos media tradicionais, levou também estes actores políticos a procurar outras formas de comunicar a sua mensagem, e a Internet e em especial os social media não só permitiram isso, como deram maior exposição aos seus argumentos, que assim não passam por nenhum tipo de verificação da sua veracidade ou filtro. De qualquer forma, é importante não esquecer que em alguns casos os media tradicionais também têm um estilo populista, veja-se o caso dos media de Berlusconi, ou os mais recentes na República Checa pela mão de Andrej Babiš, líder do partido ANO 2011 (Acção dos Cidadãos Descontentes), entre outros.

E como descreveria essa relação entre a emergência do populismo e a disseminação de informação fora dos media tradicionais?
Diria desenvolvimento de várias formas de populismo, porque o populismo não é um fenómeno novo. Na realidade, já existiam movimentos e partidos populistas no século XIX. Mas, sem dúvida, que o facto de existirem agora meios de comunicação que são acessíveis a todos e que têm um alcance que vai muito para além das fronteiras geográficas de um país, permite não só um desenvolvimento sem precedentes, como até facilita fenómenos de contaminação. Mas apesar disto é importante ter presente que existem outras causas sociais e políticas por detrás dos populismos. De qualquer forma, os media tradicionais também não estão isentos de responsabilidade dado que muita da cobertura jornalística que é feita da política também não inclui, muitas vezes, o necessário “fact-checking” e os jornalistas eles próprios não são imunes à manipulação, especialmente nos casos em que existe pouco distanciamento em relação aos partidos e à classe política em geral.

Poderíamos ter um Presidente Trump, ou a vitória do Brexit, sem a diluição do papel dos media enquanto verificadores da veracidade do discurso político?
As causas desses fenómenos não são os social media, ou a existência de mais espaços em que não existe a mediação do discurso dos políticos pelos jornalistas, são outras, sociais, económicas, políticas e até culturais. Agora, muito provavelmente não teriam a dimensão e o sucesso que tiveram, ou continuam a ter, se não fosse a possibilidade de contornar todas as estruturas de mediação e comunicar directamente com um grande número de pessoas sem nenhum tipo de constrangimento. Trump é claramente uma “construção mediática”, o seu reality-show na NBC permitiu-lhe uma visibilidade que ele não teria de outra forma e que serviu para transmitir para o público uma imagem de empresário bem sucedido, algo que muitos americanos apreciam e que por isso encontra facilmente ressonância na cultura americana. Com o Twitter, Trump pode dizer o que quer sem filtro e pode alimentar todo o tipo de teorias da conspiração e controvérsias com a sua versão da realidade, ou com os “factos alternativos”, segundo a designação dada por Kellyanne Conway, uma das suas conselheiras. A maior parte dos populistas são pessoas extremamente hábeis que conseguem ler o clima de opinião e posicionam o seu discurso de acordo com aquilo que as pessoas querem ouvir, identificam os principais receios das pessoas, seja o movimento de refugiados vindos dos países Islâmicos, seja o desemprego e a austeridade, e apresentam-se como alguém que compreende verdadeiramente o povo. Depois, outras componentes extremamente importantes são a simplicidade (geralmente, excessiva) e a presença de emoção nestes discursos políticos, o que os torna extremamente apelativos para muitas camadas da população.

O caso da campanha do referendo que conduziu ao Brexit é um excelente exemplo de manipulação da informação e do uso das emoções nos discursos políticos, com o objectivo de convencer a opinião pública.

Há alguma relação assinalável entre pobreza/desiguladade e a emergência do populismo?
Situações de crise tendem a potenciar o desenvolvimento dos discursos e das estratégias políticas populistas. Mas isto não significa que não possam haver actores políticos populistas e discursos políticos populistas noutros contextos. No discurso populista existe normalmente uma diferenciação entre “nós” e “eles” (os outros). No caso do discurso associado às direitas populistas existem referências à pobreza e à desigualdade, mas nesta perspectiva os “outros” são os imigrantes (e os refugiados) que consomem os recursos limitados do “welfare state” que deveriam ser canalizados para os cidadãos nacionais. No caso dos discursos populistas de esquerda que existem na Europa, os “outros” são as elites políticas e económicas, as instituições da União Europeia, a “troika”, os credores internacionais, que impõem condições que se traduzem em austeridade, cortes no “welfare state” e outros, e que depois se reflectem na deterioração das condições de vida das populações em geral, e dos mais desfavorecidos em particular. Mas é interessante notar que há autores, como Chantal Mouffe, que referem que a emergência de movimentos e actores populistas de esquerda é muito importante para contrabalançar a importância crescente de alguns partidos de extrema-direita na Europa (os que são vistos como xenófobos, racistas e nacionalistas). Por isso, nesta perspectiva, que segue aliás a visão de Ernst Laclau, o populismo em si não é necessariamente negativo. Aqui a ideia fundamental é que qualquer democracia deveria primeiro que tudo saber responder às necessidades do povo. Se isso não acontece e se os cidadãos não se sentem representados pelas elites políticas de forma adequada então abre-se espaço para a emergência e sucesso dos populismos.

No livro são apontados vários exemplos de movimentos populistas na Europa que sofrearam transmutações. Há uma tendência europeia a assinalar?
Antes do surgimento do Syriza e do Podemos, quando se falava de populismo na Europa, falava-se sobretudo dos partidos de extrema-direita. Aliás, muitas pessoas utilizavam os conceitos como sinónimos. O aparecimento e o sucesso do Syriza na Grécia e do Podemos em Espanha chamaram a atenção para a complexidade destes fenómenos e para esta nova realidade na Europa. Depois os próprios partidos mainstream reagem a este tipo de discurso e estratégia, quer através da atenção que é dada a alguns temas em concreto, que são incluídos na agenda por estes novos actores, quer através da introdução de discursos e de estratégias de estilo populista, como forma de não perderem votos.

Afinal, o que é que pode ser considerado populismo, dentro de um espectro de debate político cada vez mais polarizado?
Na verdade, a única coisa comum a todas estas análises é o facto de reconhecerem a centralidade do “povo” nos discursos políticos populistas. A referência ao povo está sempre presente e o actor político populista posiciona-se como o verdadeiro e único mediador da vontade do povo (veja-se o discurso de posse de Trump), porque só ele compreende verdadeiramente os receios e as expectativas do povo e por isso só ele fala em nome do povo. O apelo ao povo está sempre presente em qualquer discurso populista. Depois, consoante a orientação ideológica, são identificados os inimigos do povo, ou seja, aqueles que são responsáveis pelo sofrimento do povo. Os discursos populistas tendem a esbater a pluralidade e a falar em nome daquilo que é o interesse comum do povo. Por fim, a crítica ao sistema e ao status quo é outra importante componente que está presente na maioria dos discursos políticos populistas. É possível, por exemplo, encontrar discursos e estratégias populistas fora da extrema-direita e da extrema-esquerda, e há exemplos de populismo mesmo no centro do espectro político, como é o caso do partido Israelita Yesh Atid, que foi fundado por um jornalista.

Portugal tem estado imune à vaga populista, ou os partidos mainstream integraram-na no seu próprio discurso?
Portugal é um caso interessante no contexto europeu. Diria que, comparando com outros casos Europeus, os partidos portugueses mais importantes (os que têm representação parlamentar) têm conseguido integrar nos seus discursos e nas suas estratégias muito do que poderia ser combustível para a emergência de novos actores políticos populistas. Mas isto não significa que a situação não possa mudar e que não possa surgir nos próximos tempos uma nova figura política carismática, menos moderada que os políticos actuais, e que, com recurso a estratégias e a discursos populistas, consiga convencer uma parte importante do eleitorado.

O que nasceu primeiro: a emergência do populismo ou a "pós-verdade"?
O fenómeno da “pós-verdade” não é propriamente novo, apenas esta designação em particular. Pode ligar-se à era do pós-modernismo e do crescente relativismo que também encontrou eco nos media e na forma como é feita a cobertura noticiosa da realidade. Muitas vezes, a informação factual é tratada como mera opinião e não existe uma clara distinção em muitos textos jornalísticos entre o que é facto e o que é interpretação e opinião. Para além disso, também os enquadramentos jornalísticos a que são sujeitos os factos e eventos para serem noticiados introduzem algum relativismo na verdade dos factos. Mas o conceito de pós-verdade, tal como definido actualmente, refere-se às situações em que os factos são considerados menos importantes que as crenças. Aquilo que reforça as opiniões sobre algo é integrado no discurso e aquilo que as desafia é liminarmente rejeitado. Isto faz com que esteja muitas vezes associado a argumentos que são considerados populistas. O que é inteiramente novo é a enorme visibilidade e a ressonância que as construções narrativas alternativas dos factos têm hoje com a Internet.

Do lado da política, Hannah Arendt, já em 1967 num artigo intitulado “Truth and Politics” publicado na revista New Yorker, chamava precisamente a atenção para o problema fundamental que pode existir na discussão política se os actores políticos não concordarem entre si com o que são os factos. Já para não falar da importância crescente dos spin doctors e da profissionalização da comunicação política que tem um papel fundamental na manipulação da informação, com o fim de atingir determinados objectivos políticos (ganhar uma eleição, convencer a opinião pública de uma medida, desacreditar os argumentos dos partidos da oposição, etc.). Depois, as estratégias de desinformação e de manipulação da informação política são usadas desde sempre em política.

Há alguma relação entre os novos media e o alcance da mensagem discriminatória (sexista, racista, xenófoba) entre grupos de eleitores com bons níveis de educação formal?
Os novos media têm contribuído de forma determinante para a exacerbação dos discursos e para a bipolarização das posições. Aliás, outra característica subjacente aos discursos políticos populistas que é reiterada pelos novos media é a simplificação exagerada dos problemas. E isto inclui o reforço de estereótipos pejorativos de grupos religiosos ou étnicos (ou minorias sexuais, etc.), ou de papéis sociais dos géneros, por exemplo. Qualquer pessoa pode agora produzir e transmitir conteúdos através da Internet, o que, se por um lado democratizou o acesso aos espaços de debate público, coloca, por outro lado, sérios problemas em relação à intencionalidade e à veracidade desses conteúdos. Neste sentido, pode dizer-se que a Internet tem contribuído para a falta de moderação nas discussões e para o que parece ser o princípio do fim do “politicamente correcto”.

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