Quem lidera o mundo? Trump ou Xi?

Sinal dos tempos, Xi Jinping, que vai esta semana à Florida encontrar-se com o seu homólogo americano, já mostrou que sabe aproveitar as oportunidades.

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1. A resposta ainda é fácil: os EUA ainda continuam a liderar o mundo, com a sua inigualável influência económica, política, militar e cultural e o dinamismo da sua democracia. O problema é que Donald Trump faz-nos pensar se esse tempo não se está a esgotar demasiado depressa. A pergunta seguinte é se a Europa tem condições para ocupar, pelo menos em parte, o lugar deixado vazio. É altamente discutível, envolvida que está no Brexit, numa crise existencial sem precedentes e sem solução à vista, que a divide profundamente. Resta, naturalmente, a China. Sinal dos tempos, Xi Jinping, que vai esta semana à Florida encontrar-se com o seu homólogo americano, já mostrou que sabe aproveitar as oportunidades. Em Davos, no Fórum Económico Mundial, foi o arauto do comércio livre e da globalização, enquanto Trump anunciava uma nova era de proteccionismo, dispondo-se a rasgar muitos dos acordos de livre comércio negociados pelos seus antecessores. A proclamação de Xi não deve ser tomada à letra. Pequim ainda coloca imensas dificuldades ao investimento estrangeiro na China, enquanto beneficia da abertura dos mercados das grandes economias ocidentais. Aproveitou a crise europeia para investir fortemente nos países com mais dificuldades, de que Portugal e Grécia são exemplos, para além dos países de Leste. Pior do que isso, os europeus queixam-se do dumping chinês e da falta de respeito pela propriedade intelectual, mantendo em aberto a concessão do estatuto de economia de mercado à China. Mesmo assim, ninguém ignorou o discurso de Xi onde anualmente se reúne a fina flor do mundo empresarial e político.

2. Também recentemente, o Presidente chinês teve a oportunidade de se declarar o líder do combate às alterações climáticas, precisamente quando o seu homólogo americano se preparava para anular os acordos e as políticas ambientais de Obama, dentro e fora de fronteiras. Não é surpresa. Trump disse na campanha que as metas ambientais apenas serviam para afectar a competitividade da economia americana e beneficiar outros, como a China. Aliás, chegou a dizer que eram uma invenção chinesa. Vale a pena recordar a estratégia de Obama neste sector crucial. Primeiro, aproveitou a “ausência” europeia na Conferência de Copenhaga (2008, quando a Europa achava de lhe bastava apresentar-se como o modelo a seguir, dispensando qualquer negociação e perdendo o controlo dos acontecimentos), instalando-se à mesa das grandes potências emergentes que negociavam à parte para impor a sua estratégia muito menos ambiciosa contra o mundo desenvolvido. Correu bem. Já no seu segundo mandato, quando as relações com a China não corriam da melhor maneira (a estratégia de Obama de contenção do poder da China na Ásia-Pacífico, passava pelo fortalecimento dos seus aliados regionais), encontrou com Xi uma área de cooperação fundamental, precisamente nas alterações climáticas, abrindo as portas para o Acordo de Paris. Trump ameaça pôr tudo em causa. Xi tenta ocupar o lugar, levando a sério os compromissos internacionais que assumiu. Como refere a Economist, durante a presidência chinesa do G20 (2016), “Xi fez do combate às alterações climáticas a sua prioridade”. A China ainda é o maior poluidor mundial. E já nem vale a pena referir que a Parceria Transpacífica de Comércio Livre, negociada por Obama com onze países do Pacífico, incluindo o Japão e excluindo a China, já morreu às mãos da nova administração, abrindo mais uma vez espaço a Pequim para “substituir” o aliado americano.

3. Se nos tivessem contado esta história há um ano, não acreditaríamos. Resta acrescentar que, com Xi, a China está a começar a assumir um papel relevante na cena internacional, deixando para trás a política decretada por Deng Xiaoping (1992) do “peaceful rising”, que consistia em manter a cabeça baixa para que nada perturbasse o crescimento económico. Xi já virou o leme para um maior protagonismo internacional, apresentando-se como o defensor da ordem multilateral e lembrando, por exemplo, que é hoje o segundo maior financiador (depois dos EUA) das missões dos capacetes azuis da ONU. É este o clima que envolve o encontro dos dois Presidentes na quinta-feira, e que Trump já qualificou de “muito difícil”. A sua maior preocupação é o gigantesco défice comercial que os EUA têm com a China (347 mil milhões de dólares) num total de 734 mil milhões no ano passado (Japão, Alemanha, México e Irlanda são os seguintes). Acaba de assinar uma ordem segundo a qual o Departamento do Comércio deve fazer em 90 dias o inventário completo das relações comerciais com mais de uma centena de países, um a um. Os EUA têm de há muito um enorme défice externo, porque funcionam como o “mercado de último recurso”, sempre que há uma crise económica regional ou global. Isso não chega a prejudicar a força da sua economia, num mundo em que o comércio se faz em dólares e em que a sua capacidade de inovar não tem paralelo. Trump argumenta que isso significa a destruição do emprego e das empresas em solo americano. Uma mudança brusca seria uma catástrofe económica mundial. Para a China, nomeadamente, seria um enorme problema. Xi tem de levar a cabo uma transição económica muito difícil entre um modelo assente nas exportações e outro mais apoiado no consumo e no investimento interno. Precisa de evitar saltos bruscos que ponham em causa as expectativas das classes médias e daqueles que ainda são pobres mas acreditam que podem deixar de o ser. Nos últimos dias, os chineses têm tentado deitar alguma água na fervura de Trump, mostrando-se abertos à redução deste desequilíbrio. Não querem um choque frontal com Washington.

4. Olhando para o mercado americano, também é fácil de ver que as importações chinesas (e não só) têm um papel importante no funcionamento da sociedade, porque permitem à classe média baixa, de rendimentos estagnados há muito tempo, ter acesso a uma grande variedade de bens de consumo que, noutras circunstâncias, lhes estariam vedados. Isso e o crédito fácil (antes da crise) alimentaram a miragem (já bastante abalada) de uma sociedade da abundância em que o aumento das desigualdades não se tornasse indecoroso. Trump tem outros temas de agenda com Xi igualmente muito complicados. A Coreia do Norte é um deles, bem como o constante medir de forças no Mar da China do Sul em volta das ilhas e das águas territoriais reivindicadas por Pequim e onde a China se comporta como se (já) fosse dona e senhora da região.

Hoje, a Ásia-Pacífico é a região do mundo onde a corrida aos armamentos é mais acelerada. Obama reafirmou sem ambiguidade a política dos seus antecessores: a América é uma potência da Ásia-Pacífico e tenciona continuar a ser. Trump, para além de vários disparos em outras tantas direcções, está longe de definir qualquer coisa que se assemelhe a uma estratégia. Inicialmente, queria ser o amigo de Putin contra uma China erigida em principal inimigo. Hoje, a confusão reinante levanta várias interrogações sobre esse objectivo.

Quanto ao papel dos Estados Unidos no mundo, para além da obsessão com o comércio e o desprezo pelos aliados, a única preocupação do Presidente foi o aumento enorme do orçamento do Pentágono (10 por cento) para valores que empalidecem ainda mais os dos seus adversários mais directos, como a China, que também está a aumentar a sua capacidade militar ao ritmo de 10 por cento. A Economist descreve a relação entre a superpotência instalada e a candidata a superpotência com a fábula da corrida entre a tartaruga e a lebre e lembra como é que ela acaba. É questão para estarmos muito atentos. Até porque sabemos que, sem os EUA, é muito difícil à Europa ter qualquer estratégia com a China que não passe apenas pelas relações comerciais, que manifestamente já não chegam.

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