Casos de hepatite A afectam sobretudo homens com 30 anos

Portugal já registava esta quarta-feira 115 casos e Lisboa e Vale do Tejo é a região com mais infecções notificadas, mas também há casos em Coimbra, Porto, Setúbal e Algarve. Direcção-Geral da Saúde diz agora que não há relação com o chemsex.

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Algumas infecções ocorreram após sexo na sequência de encontros combinados em clubes Paulo Pimenta

Afinal, o surto de hepatite A detectado em Portugal e que até esta quarta-feira já ascendia a 115 casos notificados — sobretudo jovens do sexo masculino com uma média de 30 anos — não estará associado ao fenómeno do chemsex ("actividade sexual potenciada por substâncias químicas"), como foi anunciado pela Direcção-Geral da Saúde (DGS) numa primeira versão das orientações clínicas divulgada na terça-feira.

Mas a maior parte dos casos já confirmados é de homens que fazem sexo com homens, como inicialmente foi anunciado. Apesar de Lisboa e Vale do Tejo ser a região com mais casos, já foram identificados doentes noutras regiões, nomeadamente em Coimbra, Porto, Setúbal e Algarve.

De 1 de Janeiro a 29 de Março, foram notificados 115 casos de hepatite A e, destes, 58 obrigaram a hospitalizações. “Do total de casos, 97% são adultos jovens do sexo masculino, principalmente residentes na área de Lisboa e Vale do Tejo (78 casos)”, precisou a DGS numa terceira versão das orientações para médicos e enfermeiros divulgada ao final da tarde de quarta-feira.

Depois de o alerta ter sido dado no dia anterior pelo director-geral da Saúde, Francisco George, na SIC, as vacinas para a hepatite A (a imunização não está incluída no Plano Nacional de Vacinação) começaram a rarear em muitas farmácias, o que levou aquele responsável a pedir às pessoas, nesta quarta-feira, para apenas comprarem o fármaco se forem aconselhadas por médicos e aos profissionais de saúde a contactarem a linha do medicamento (800222444) em caso de necessidade. A prioridade é vacinar no âmbito deste surto, as pessoas que tiveram contactos com os infectados.

Extensão do surto subestimada

Mas este problema já era conhecido há algum tempo. A 23 de Fevereiro, o Centro Europeu de Prevenção e Controlo de Doenças (ECDC, siglas em inglês) publicou um relatório em que dava conta de que, desde Fevereiro de 2016, tinham sido confirmados 287 casos de hepatite A em 13 países da União Europeia, Portugal incluído. A maior parte dos casos era de homens adultos que têm sexo com outros homens, referia o ECDC. Apenas nove mulheres tinham então sido infectadas. O ECDC sublinhava então que a extensão destes surtos está subestimada, porque apenas são conhecidos os casos que chegam às unidades de saúde.

O hepatologista Rui Tato Marinho, do Hospital de Santa Maria (Lisboa), diz que os médicos começaram a suspeitar que algo de estranho se passava quando há cerca de dois meses começaram a ser internados nalguns hospitais alguns doentes com icterícia (olhos amarelos), um dos vários sintomas da hepatite A. As situações começaram a multiplicar-se, quando em Portugal nos últimos anos os casos de hepatite A notificados se ficavam por pouco mais do que duas dezenas por ano. Foi isso que levou os médicos a suspeitar de que havia um surto. E tudo indica agora que há muitos mais casos, porque apenas uma parte dos doentes fica com icterícia, diz. 

“É expectável que sejam diagnosticados mais casos nos próximos dias”, admitiu ao PÚBLICO a directora da Programa Nacional para as Hepatites Virais da DGS, Isabel Aldir, que fez questão de enfatizar que "não há a relação entre o chemsex e esta situação específica”. Como se justifica então a referência a este fenómeno num “primeiro draft” divulgado terça-feira à noite pelo Expresso? “Não passava de uma nota num documento de trabalho” que uma posterior “análise de dados” veio desmentir, disse a médica. “O chemsex existe em Portugal, mas é [um fenómeno] muito raro no país e não está associado a este surto”, assegurou.

O que é certo é que a maior parte dos infectados já diagnosticados são “adultos jovens, na terceira década de vida, em média, e quase exclusivamente homens”. A maior parte são também homens que fazem sexo com homens e metade tiveram que ser internados em hospitais, não porque a doença seja grave, mas porque é “incomodativa  — manifesta-se por um grande cansaço, falta de apetite, náuseas, icterícia [olhos amarelos] nalguns casos”, explicou.

Uma "excitação" dos reponsáveis da DGS

Foram “duas associações representativas da sociedade civil” chamadas à DGS na tarde de quarta-feira que estiveram a rever o polémico documento com as orientações e que desfizeram a associação entre este surto de hepatite A e o chemsex — que já é considerado um problema de saúde pública em várias capitais europeias, como Londres, Berlim e Amesterdão. 

No ponto referente aos grupos de risco referido na orientação emitida pela DGS  surgiam os homens que fazem sexo com homens (HSH), mas, depois do encontro com representantes da ILGA Portugal e do GAT (Grupo de Activistas em Tratamentos), a DGS actualizou a nota acrescentando os seguintes comportamentos: “Sexo anal (com ou sem preservativo); sexo oro-anal; sexo anónimo com múltiplos parceiros; sexo praticado em saunas e clubes, entre outros locais e encontros sexuais combinados através de aplicações tecnológicas (Apps)”.

“Refizemos a orientação. Entre os casos até agora identificados só há um relacionado com o festival do Verão passado de Amesterdão [Europride]”, explicou ao PÚBLICO Diogo Medina, do GAT. Segundo o dirigente desta associação, a maior parte dos casos detectados em Portugal — que estão agora a crescer a um ritmo na ordem de uma dezena por dia, segundo o director-geral da Saúde — tiveram origem num dos três clusters até agora identificados em vários países europeus e que teve início em pessoas que viajaram para a América Central e do Sul e que ali se terão infectado através de água ou comida contaminada. No regresso, o vírus espalhou-se através relações sexuais.

"Uma excitação" da DGS?

Sublinhando que Lisboa é a área mais afectada, mas que já há casos no Porto, em Lisboa, Setúbal e Algarve, Diogo Medina dá os números obtidos num inquérito efectuado há dois anos a uma amostra superior a mil homens que fazem sexo com homens e em que apenas 1,7%, em Lisboa, admitiram praticar chemsex. A média de idades dos que admitiram esta prática era então de 40 anos, quando este surto está a atingir sobretudo pessoas com 30 anos. “Não são as mesmas pessoas. [ a referência ao chemsex] foi um lapso, uma excitação do momento dos responsáveis da DGS”, sustenta.

Na orientação, a DGS explica, de facto, que nas amostra clínicas de 55 dos doentes diagnosticados, apenas num caso importado foi demonstrada a estirpe "associada ao cluster relacionado com um festival de Verão na Holanda  [o Europride]. 

Para o presidente da Associação Nacional dos Médicos de Saúde Pública, Ricardo Mexia, o que poderia ter sido feito eventualmente era ter-se intervindo há mais tempo. "É preciso recomendar a pessoas que tem comportamentos de risco que tenham cuidado e que se vacinem", enfatiza.

Na orientação para médicos e enfermeiros, a DGS explica que a vacina, no contexto do actual surto, deve apenas ser prescrita às pessoas entre os 12 meses e os 40 anos com suspeitas de terem sido expostas ao vírus, por exemplo através do contacto com doentes, “uma vez que induz imunidade activa e maior durabilidade da protecção [acima dos dez anos], sendo mais fácil de administrar e de mais fácil acesso”. 

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