Reflorestar Portugal como nunca foi feito

O reforço de meios humanos e materiais para vigilância no terreno e para uma resposta rápida no despontar dos fogos é bem acolhida masn ão basta para uma reforma a longo prazo da floresta, onde incêndios devastadores deixem de ocorrer naturalmente.

Após os incêndios devastadores do último verão, da situação de calamidade pública vivida em grandes extensões do território nacional e de muitas promessas de um grande debate, proferidas no calor das chamas, seria expectável que o conjunto de medidas legislativas propostas pelo Governo na denominada Reforma das Florestas e que até há poucos dias estiveram em discussão pública, fosse tema central da agenda política, da comunicação social, de muitas entidades e organismos do Estado e do sector privado envolvidos na questão, dos portugueses em geral, durante o tempo necessário para levar à exaustão uma discussão que mais uma vez não se vai fazer.

Tamanho desinteresse talvez se explique pelo facto da Floresta não ser um tema "fracturante", pelo problema de fundo que há para discutir, não ser perceptível às gerações mais novas que nasceram já com a "floresta" do eucalipto e até às gerações anteriores que viram o eucalipto ganhar terreno à… "floresta" do pinheiro-bravo. E também ao facto de muitos dos que convivem com o sector florestal se darem bem com a triste realidade da floresta nacional. Tão grave como este desinteresse generalizado, que retorna em cada inverno, é que com a nova legislação, a dita reforma não se fará. Logo à partida, porque não se reconhece que em grande parte do norte e do centro do país, floresta é algo que não existe e que o que se impõe não é uma reforma, mas sim uma refundação, uma reflorestação do país como nunca foi feita depois de séculos de recuo do coberto florestal que deveria prevalecer o nosso território.

Tudo o que de positivo se confere nas medidas legislativas agora apresentadas pelo Governo, são ferramentas. A criação de um banco e de uma bolsa de terras, de um sistema de informação cadastral, de incentivos fiscais, de um regime jurídico de reconhecimento das sociedades de gestão florestal e as alterações ao regime de criação das zonas de intervenção florestal, mereceriam aplauso se paralelamente estivesse em mente utilizar estes instrumentos numa verdadeira reforma que desde logo reflectisse um evidente empenho do Estado. Mas não. A desistência que o mesmo manifesta, é preocupante, quando, reconhecendo a situação de abandono das suas (nossas) matas, se propõe ceder a respectiva exploração a terceiros.

Nos critérios de preferência nos processos de atribuição de terras a futuros  interessados, não figura a valorização da floresta sustentada, a utilização de espécies autóctones. A biodiversidade é uma ideia genérica nos preâmbulos dos diplomas. O Estado devia propor-se recuperar infraestruturas existentes, abandonadas, nomeadamente viveiros florestais e produzir e disponibilizar árvores de espécies recomendáveis, em vez de subsidiar explorações que depois não consegue acompanhar e controlar. Não se encontram medidas objectivas e eficazes para reconstruir uma floresta sustentável, realmente resiliente ao fogo, prestadora de serviços de ecossistema diversificados, fomentadora da fixação de comunidades residentes que nela garantam postos de trabalho.

Mas o verdadeiro perfil da "reforma" das florestas em discussão, contacta-se na abordagem das questões centrais. Desde logo a ideia de manter o status quo, quando se referem as arborizações e rearborizações. No que toca às espécies de eucalipto, apenas se defende  a sua não expansão e mesmo assim com nuances.  E as outras extensas áreas de monoculturas, nomeadamente de pinheiro-bravo? Às folhosas reserva-se o papel de criar barreiras de contenção do fogo, para protecção das grandes áreas que continuarão entregues aos eucaliptos, aos pinheiros e aos matos!

Até na Rede Nacional de Áreas Protegidas e Rede Natura 2000, o documento que deveria ser o mais importante para a reforma efectiva da floresta portuguesa é uma desilusão. Não existe uma estratégia ambiciosa, que deveria passar pela erradicação progressiva das manchas de exóticas e onde a disseminação de sementes colhidas nos redutos de maior interesse natural fosse uma bandeira para os organismos do Estado e para todas as entidades e cidadãos que se quisessem associar a uma verdadeira revolução, onde a vocação turística que o país parece ter que valorizar também fosse atendida.

Uma visão global do território, que se impõe, ficará seriamente fragilizada pela intervenção vinculativa que as câmaras municipais vão exercer nos processos de arborizações e rearborizações "aprovadas" pelo ICNF [Instituto de Conservação da Natureza e Florestas]. As áreas de montanha outrora submetidas a grandes plantações de monoculturas, posteriormente queimadas, são agora extensos territórios cobertos de matos, ciclicamente sujeitos a fogos incontrolados que inviabilizam qualquer tipo de regeneração florestal natural. Tão negra quanto a cor que prevalece nos nossos montes após cada verão, é a solução dada para contrariar este tipo de incêndios, através do denominado Programa Nacional de Fogo Controlado e da Alteração ao Sistema Nacional de Defesa da Floresta contra Incêndios.

É lamentável a atenção que se dá ao recurso ao fogo como forma de resolver os problemas da "floresta" portuguesa. A grande preocupação desta "reforma" é de facto acabar com o impacto dos fogos extremos. Como? Queimando, queimando, queimando. O recurso ao fogo para combater… o fogo,  é defendido por ser a via menos onerosa de gerir os combustíveis! O tema merece um planeamento e uma  quantificação de recursos humanos e financeiros a afectar, que não se conferem noutras áreas de intervenção. Propõe-se um aumento exponencial das áreas a sujeitar a fogos controlados, envolvendo entidades diversas, formando novos técnicos, alocando recursos diversificados. Um novo negócio em perspectiva!

Uma intervenção assente no pressuposto de que os matos em que transformamos a nossa floresta, devem ser controlados e não reconvertidos! Diz-se que a preocupação é fazê-lo acautelando os interesses dos pastores e dos caçadores. Como? E como é acautelada a biodiversidade nos quase 200 mil hectares de território identificados como tendo aptidão para o fogo profissional, defendido para os próximos anos? Uma aptidão, é importante dizê-lo, baseada no histórico de incêndios. Os terrenos mais aptos são os que arderam mais nas últimas décadas! Porque será? E o que acontecerá quando o terreno queimado deixar de contar com verbas para este "controlo" nacional dos matos? Apesar das restricções, a utilização do fogo "controlado", nomeadamente das queimadas em territórios de montanha, continuará a promover a degradação do coberto vegetal, especialmente do de porte arbóreo. Não são apresentadas medidas no sentido destes espaços voltarem a ser arborizados. O Estado tem aqui um papel fundamental numa inadiável revisão da política de gestão dos terrenos baldios, que passa por um ordenamento efectivo do pastoreio e de controlo das práticas a ele associadas.

Por último, o reforço de meios humanos e materiais para vigilância no terreno e para uma resposta rápida no despontar dos fogos é bem acolhida, mas, pelo que já foi dito, não basta para uma reforma a longo prazo da floresta portuguesa, onde incêndios devastadores deixem de ocorrer naturalmente. No que aos fogos diz respeito, continuaremos pois dependentes do S. Pedro.

 

 

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