Para não dizerem que não falámos de flores

Violeta é nome de mulher, é nome de instrumento musical, é nome de flor. É também uma cor resultante da mistura do azul com o vermelho. Fomos à procura das flores. Não são fáceis de encontrar. Em Portugal, o sector das flores movimenta 450 milhões de euros.

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Sábado, hora de almoço, Mercado da Ribeira, Lisboa. O offshore das comidas regurgita de turistas e autóctones. A loja de flores de Teresa Mendes (e é dela a expressão offshore… naquele contexto) está vazia. Há tempo para conversar. E tempo para ironias: “É para isso que estamos cá, conversar. E para decoração, e para dizer às pessoas onde é que fica o quarto de banho e onde é que se apanha o autocarro. Vendas? A maior parte das pessoas que trabalham com flores não sabem fazer contas. Se soubessem, veriam que não é rentável. É uma arte de empobrecer alegremente.”

É também o que se diz do negócio dos livros e em Barcelona, em Abril, por alturas de Sant Jordi, trocam-se e oferecem-se rosas e livros. “Nós nem uma rosa de jeito conseguimos produzir! As rosas vêm do Equador e da Colômbia, tal como os cravos.” Com que flores se enfeitariam hoje as espingardas do 25 de Abril? “Flores portuguesas? As sementes são holandesas, as terras são dos espanhóis ou dos holandeses, as estufas são feitas em Espanha, a mão-de-obra é nepalesa, nosso é apenas o sol! Portugueses, só os jarros e os narcisos. Tudo o resto paga royalties! Ou vem da África do Sul, como as próteas, ou da Austrália, do Sri Lanka, da Tailândia…” Nem rosas, nem cravos, narcisos ou jarros: entrámos ali à procura de violetas, que não há. Tal como não havia nas muitas lojas e bancas onde, antes, as havíamos procurado, a troco de alguns olhares discretamente interrogativos, se não mesmo abertamente desconfiados.

A cada flor o seu cultor e, entre azáleas e zínias, não haverá uma que os não tenha. Cultores. No passado fim-de-semana, por exemplo, decorreu no Palácio Nacional de Sintra uma exposição de camélias e orquídeas. As exposições de camélias são recorrentes no Porto e, no início deste mês, uma semana inteira foi-lhes consagrada, com dezenas de actividades em torno da “flor da cidade”. Epíteto oficial e patenteado desde que, em 2015, a autarquia lançou a marca “Porto. Cidade das Camélias”. Uns dias antes, realizaram-se no Jardim Zoológico da capital exposições e concursos de orquídeas. Mas a nossa peregrinação por Lisboa em busca de violetas é anterior. Começou em Fevereiro, quando assistimos, no Palácio Fronteira, ao XI Encontro Internacional Sobre Violetas.

A sentimental e nobre Viola pode não ter ainda (?) originado, entre os seus cultores portugueses, uma associação (como já aconteceu com as camélias) ou um clube (e é o caso das orquídeas), mas tem uma corte cosmopolita de apaixonados, investigadores, curiosos e outros interessados que, com indefinível periodicidade, se reúnem desde há mais de 20 anos, ora num país, ora noutro (e isso já aconteceu nos Estados Unidos, em França, Inglaterra, Itália e Portugal), para debater tudo quanto se possa imaginar e desejar saber, da botânica à história e do mito ao comércio, sobre esta flor.

Foi assim que, durante dois dias, nem a magnífica banda desenhada (ou diário gráfico) em azulejos da Sala das Batalhas do Palácio Fronteira – que narra, com acuidade de fazer inveja ao jornalismo vigente, os combates que selaram a Restauração da independência de Portugal no século XVII – conseguiu distrair a atenção de cerca de 70 participantes e uma dezena e meia de oradores. Há portugueses, espanhóis, franceses, ingleses. Reincidentes na história destes encontros, mais de um terço deles, ou na plateia ou no painel de discursantes. É o caso da francesa Nathalie Casbas, que em 2007 trouxera a Beja a Duchesse de Braganza, uma variedade de violetas de Toulouse por si criada e baptizada em homenagem a Dona Isabel de Herédia, e que veio agora a Lisboa recordar 30 anos de uma paixão nascida quando o estudo da horticultura lhe reavivou uma memória da infância: em casa da avó, costumavam degustar violetas cristalizadas. É o caso do inglês Clive Groves, cuja família cultiva violetas (e outras flores, evidentemente, que nem só de violetas vive o homem) desde a segunda metade do século XIX e que é hoje o curador da Colecção Nacional de Violetas do Reino Unido. Eram dele as que vimos transplantadas para o Jardim de Vénus do Palácio Fronteira. É o caso de Hélène Vié, que, trajando de violeta desde a cabeça até aos pés, veio promover os incontáveis produtos e serviços derivados da flor, que comercializa numa loja flutuante que montou numa péniche (barcaça) no Canal do Midi. E é, ainda, o caso da escritora argentina que, tendo estado no primeiro meeting deste género, em 1995, em Washington (EUA), veio encerrar o encontro de Lisboa com uma comunicação sobre “The mysterious fragrance of violets as found in literature”. Nome da autora: Violeta. Leram bem: Violeta. Violeta Balián.

Foi a terceira vez que estes encontros internacionais se realizaram em Portugal. Graças, principalmente, a Luís Mendonça de Carvalho, professor no Instituto Politécnico de Beja e director do respectivo Museu Botânico. Quando lhe perguntamos por que razão se interessou por estas flores que “dão muito trabalho e pertencem ao passado, passaram de moda” (palavras suas), responde, recordando também uma sua avó, que “se calhar é uma coisa freudiana”. A verdade pode ser mais simples. A etnobotânica é um dos campos de investigação de Mendonça de Carvalho. Em 2004, estando “especialmente interessado na investigação sistemática do género Viola”, foi ao (7.º) Encontro Internacional Sobre Violetas então realizado em Toulouse (França). Três anos depois, organizou em Beja a primeira reunião do género em Portugal.

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De que flor falamos quando falamos de violetas?

Tinham-nos dito haver em Alcabideche um floricultor que produzira violetas e que depois desistira. Que lhe perguntássemos porquê. Foi o que fizemos. Mas quando as palavras “ramo” e “bouquet” foram citadas, Jorge Dias exclamou: “Não devemos estar a falar da mesma flor!” Não estávamos. A planta que o nosso interlocutor cultivara durante dez anos, chegando a comercializar 7 mil pés por semana, e de que desistira por causa da subida dos custos do gás para o aquecimento das estufas, era afinal do género Saintpaulia. Produzida cá ou importada de África ou da América do Sul, esta violeta-africana, nome comum que tem a vantagem de ser verdadeiro, é uma planta que nem sequer pertence à família das Violaceae (onde se filia o género Viola), mas é a que mais se encontra, em vaso, quando se anda à procura de violetas. Quanto à odorata, à cornuta, à tricolor (igualmente conhecida como amor-perfeito) ou outras verdadeiras espécies de violetas, Jorge Dias diz-nos não conhecer ninguém que as cultive ou que as tenha cultivado.

Para efeitos estatísticos (em Portugal, pelo menos), o género Viola é reduzido à espécie comummente designada por amor-perfeito e acompanha petúnias, brincos-de-princesa e outras na conta das plantas ornamentais (significando, basicamente, que são comercializadas em vaso). Rosas, túlipas e girassóis, por exemplo, são consideradas “flores de corte” (são vendidas cortadas, à unidade ou em ramos). Hortênsias e crisântemos cabem em ambos os canteiros. Ricardo Silvestre, engenheiro agrícola e vice-presidente com o pelouro das plantas ornamentais da Associação Portuguesa de Produtores de Plantas e Flores Naturais (APPP-FN), diz-nos que as violetas que procuramos são flores “para um nicho de mercado muito residual. Não conheço nenhum produtor de violetas em Portugal”. Pelo menos de espécies como a odorata. Mas admite que tenha crescido nos últimos anos o interesse económico (por via da sua utilização gastronómica) de espécies híbridas como a Viola x wittrockiana: “As sementes são relativamente caras, mas as flores são resistentes e mantêm as qualidades genéticas.”

As últimas informações disponibilizadas pelo Instituto Nacional de Estatística (INE) sobre a produção e comercialização de flores datam de 2012. De um total de mais de 60 milhões de plantas ornamentais produzidas em cerca de 300 explorações, perto de 1,1 milhão eram amores-perfeitos (a espécie Viola das estatísticas) comercializados por 40 produtores (mais de metade dos quais situados no centro e no Norte do país). No conjunto (ornamentais, plantas e folhagem de corte), o sector movimenta actualmente cerca de 450 milhões de euros. Para Ricardo Silvestre, o número “é pouco significativo na fileira do viveirismo, que ascende a uns 2 mil milhões, englobando hortícolas e frutícolas. O sector [das flores] mereceria maior atenção dos nossos decisores públicos. Mas nada se faz. E falta, sobretudo, planeamento. As pessoas habituaram-se a ter, ou querem ter, todas as flores todo o ano. Mas nem a Europa toda junta pode competir em flor cortada com o Equador, a Colômbia ou o Quénia, por causa dos custos da energia e da mão-de-obra”.

Parma, Toulouse, o mundo

O género Viola soma cerca de 400 espécies, 91 das quais nativas da Europa. Foi, certamente, uma destas que Ulisses avistou nos campos de Ogígia, a ilha de Calipso, no seu regresso a Ítaca. E garante Ovídio que Perséfone andava colhendo violetas (e lírios) quando foi raptada. O que me recorda, num grande salto temporal, um famoso Barão da literatura portuguesa do século XX ajoelhado na terra à sombra de macieiras, catando violetas entre rosas, jarros e sardinheiras. Ou certa personagem de José Rodrigues Miguéis alucinando num clube de jazz com “Violetas, violetas num prado verde…” As ocorrências literárias, musicais e pictóricas são tantas, porém, desde Shakespeare – que no Conto de Inverno, por exemplo, fala de violetas “Mais meigas que as pálpebras de Juno, / Mais doces que o hálito de Vénus” – até Eça de Queirós ou até ao tão menosprezado Júlio Dinis (lamentando a humilde “violeta dos campos que as rodas [do progresso ferroviário] deixaram esmagada à beira do carril”), que o espaço todo deste texto não chegaria para esgotá-las. Como nos dirá o director do Museu Botânico de Beja: “Não há romance do século XIX em que não entrem violetas!” Fora as referências nas antigas e nas modernas farmacopeias e em outras artes práticas e mágicas semelhantes.

Entre o género de violetas que Homero terá chegado a ver e cuja amplitude simbólica chega a ser paradoxal (abarcando a majestade temporal e a espiritual, o trono e o altar, mas também o humílimo abandono das flores campestres, e que é capaz de representar simultaneamente a paixão e a virtude), a de Parma é a mais famosa. Num artigo científico publicado em 2013 no Harvard Papers in Botany, subscrito por Mendonça de Carvalho, Nathalie Casbas, Clive Groves, e mais três investigadores portugueses, conta-se a curiosa história da origem hipotética dessa flor, em Nápoles designada Violetta Portoghese. Segundo uma tradição local, tal espécie de violetas teria sido levada de Portugal no século XVIII pelos Bourbon, tendo, a partir de Nápoles, alcançado Parma, onde ganhou nome e glória, e, daqui, o mundo. A começar pela Côte d’Azur e por Toulouse, onde tão bem se aclimatou que chegou a abastecer de bouquets as salas de ópera e os salões aristocráticos ou burgueses de meia Europa da Belle Époque.

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Na espécie "viola", os amores-perfeitos são os mais produzidos e comercializados dr

Depois de, entretanto, quase haver desaparecido, a Violette de Toulouse – uma flor dupla, com 30 a 40 pétalas, “couleur parme au cœur blanc”, perfume intenso, cultivada em estufas e florescendo de Novembro a Março – tornou-se uma denominação protegida e volta hoje, com o apoio programado das autoridades locais e regionais nas últimas três décadas, a estar na base de uma parcela da economia local, do turismo à cosmética e ao comércio floral. Se o Porto é a “cidade das camélias”, Toulouse é a “cidade das violetas” e lá decorrerá, em 2019, o próximo encontro internacional sobre estas flores.

No Sul de França, tudo se aproveita e transforma. As folhas seguem para a indústria cosmética, as flores agrupam-se em (caros) ramalhetes ou serão cristalizadas, transformando-se num produto gourmet que ronda os 70 euros por quilo. Mas há bombons e drageias com sabor a violeta, chocolates e chupa-chupas, chás e infusões, compotas e geleias, xaropes e licores. E há açúcar e mel, sal, mostarda e vinagre aromatizados com violeta. E há tapas e patés, queques e madalenas. E há perfumes e cremes, sabonetes líquidos e sólidos, óleos e unguentos, ambientadores e velas…

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Já não se apregoam “raminhos de violetas"

Em Portugal (quase) tudo se perde e desaproveita. Regressemos ao Mercado da Ribeira, onde há pouco interrompemos o almoço de uma florista que, depois de ter abandonado uma licenciatura em Química, abandonou a agricultura de auto-subsistência na Lousã e a produção de flores em Sintra, e agora se dedica apenas a (tentar) vender flores. Teresa Mendes acaba de sugerir-nos que procuremos as nossas (quase perdidas) violetas na loja ao lado, que costuma ter por lá uns ramalhetes breves. “Boa parte deles acaba no lixo.” Alcina, a florista do lado, confirma: “São flores muito fugazes, que duram um dia ou dois e fenecem. Por isso as pessoas não gostam de levá-las e eu, quando não consigo vendê-las rapidamente, acabo por deitá-las fora.” Custa dois euros cada ramalhete. O trabalho, moroso e delicado, de os ensamblar é feito por “um velhote de Caneças” que colhe as flores no campo e que não deixará discípulos, afirma Alcina. É o último da sua espécie.

No regresso a casa, e não podendo passar por Ogígia, flanámos pelo Chiado, melancolicamente sabedores de que as violetas já não estão na moda em São Carlos, onde, aliás, já nada parece estar na moda. Procurámo-las no Pequeno Jardim, uma clássica florista da Rua Garrett. Não tinham. Talvez para a semana. Em vaso, a africana. Insistimos: e a odorata, em bouquet? Bem, essa, a selvagem, explicou-nos Elizabete Monteiro, “só costumamos tê-la em Janeiro e Fevereiro, enfim, no Inverno, e só conheço um único fornecedor, que é da zona de Sintra, que a apanha e faz os ramos”. Certamente o tal velhote de Caneças. O último da sua espécie. Cada bouquet custa 3,5 euros. Chegam, quando chegam, uma vez por semana e, se não são vendidos e comprados no próprio dia ou no seguinte, “já não se aproveitam”. Desandámos para a Rua do Carmo. Embora não faltem no Chiado meninas lindas e quiçá namoradeiras, já nenhuma delas apregoa “raminhos de violetas”, como naquele fado que há 60 anos deu fama, e certamente proveito, a Vicente da Câmara. Mas íamos já a pensar num livro de Hélia Correia, que é sempre um bom lugar para procurarmos violetas.

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